FORMAS DA HUMANIDADE

Há muitos prazeres no mundo. Eles se me adentram pelos meus sentidos. Não há prazer sem visão, audição, paladar, tato ou olfato. São meus sensores: captam a realidade e a conduzem ao meu cérebro. Mas o meu cérebro faz mais do que perceber o mundo: ele o interpreta.

Uma galinha tem os mesmos sentidos que eu tenho. Nisso somos iguais: humanos, galinhas, a bicharada. Qual a diferença? Uma diferença de condição gerou uma diferença de resultado. O cérebro humano primitivo (reptiliano) não é mais do que um cérebro de galinha.

Mas ao cérebro primitivo se foram, pelos milênios, sobrepondo camadas, até surgir o complexo e poderoso cérebro humano. Se retirarmos as camadas superiores, encontraremos um cérebro muito antigo que cuida de nossas funções vitais, equivalente ao da galinha.

Esse cérebro primitivo comanda as nossas reações “animais” (ou instintivas), que são iguais às reações de uma ave, um animal primitivo. Exemplo: se algo assusta uma galinha ou um humano, ambos os animais entram em síndrome de emergência de Cannon.

Essa síndrome é uma resposta do sistema nervoso autônomo. As pupilas se dilatam, os músculos de fuga ou luta recebem mais sangue, o coração acelera, a pressão sobe, o pulmão se expande, mais glicose, coagulação rápida, metabolismo celular intenso, pelos eriçados. Pura natureza.

Mas, em seguida, começa a diferença: a galinha só reage, não administra a reação; à salvo, esquece o ocorrido. O humano analisa o acontecido, faz contas. O humano, passado o susto, em boa medida, pode gerenciar as condições primitivas de seu cérebro.

 Se somos – e somos – todos animais, somos um animal com esse plus. Essa tanto a mais que caracteriza o humano – esse apanágio da humanidade – é o que me importa: o humano pode ser educado e, alcançado certo patamar de educação, pode educar-se a si mesmo.

Uma galinha não consegue dar-se mais do que é; seu cérebro limitado delimita-lhe a condição de galinha. A evolução humana nos fez “ilimitados”. Podemos tanto que parece que nosso cérebro não tem linhas de demarcação. Um humano pode dar-se condições além das genéticas.

Mas – curioso – muitos humanos não se dão humanização. Postos no mundo, não são tocados pela Civilização. Bestamente vivem a vida em termos menores do que a vida permite e pede. Outros humanos, contudo, transcendem essas condições: esses humanos fazem a humanidade.

Há a humanidade como espécie: pura evolução. Há a humanidade como invenção da cultura: produção da História. Como espécie, somos todos iguais. Historicamente, as instituições que inventamos já nos declararam todos – e por isso alguns lutamos – em condições de igualdade.

Contudo, é inegável uma diferença (evito valorar) entre humanos. Nas boas ou nas más injunções do mundo, próximo da produção intelectual mais sofisticada ou longe dela, há quem esteja atinado diante de tudo e há quem não perceba nada. Há quem não se engaje na humanidade.

Exemplo: a curiosidade pela ciência ou o tocar-se pela arte. Claro, a explicação das coisas ou a expressão artística não sensibilizará uma galinha. Normal. Só que – aí é que está busílis – a sofisticação da ciência ou o sensível da arte também não tangem boa parte da humanidade.

Como se estabelece a distinção? Não sei. Não sei se alguém sabe. Sei que está em voga um relativismo cultural que recusa essa distinção que faço (dane-se o politicamente correto).

Recupero a afirmação: há humano como espécie; há humano comprometido com a humanidade.
Estou seguro de que todos temos um espaço enorme no cérebro a ser ocupado pelo melhor do que já realizamos. O cérebro humano é grandioso no sentido de ter muitas capacidades, todavia não cuidamos de lhe ofertar o suficiente, não atendemos a sua grandiosidade.

Limites da existência, determinações materiais. Isso, de fato, nos circunscreve a todos, mas não explica tudo. Muitos, mesmo no que podem, não se fazem a si, não se empurram para o ilimitado. Se alguns vão além de tudo, outros ficam galinha, boa parte contenta-se pela metade.