quarta-feira, 24 abril , 2024
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Léo Rosa de Andrade

HOMOAFETIVIDADE, MORAL, DIREITO: VOTO DO RELATOR

Tenho por desnecessário dizer o que penso quando encontro minhas concepções manifestadas de jeito que eu não faria melhor. É o caso. Relator na Apelação Cível nº 0038735-68.2015.8.24.0023, Hélio David Vieira Figueira dos Santos, do TJSC, a contragosto do Ministério Público, emite voto que se consubstancia em preleção moral sobre homoafetividade.

Sou um militante de ideias. Hoje, milito com palavras emprestadas desse Magistrado exemplar. Com a assunção da responsabilidade de edições, para adaptação do texto a este espaço, cuidando do conteúdo, trago o voto do DESEMBARGADOR:

“Como reconhece o apelante (MP), o STJ reconhece a união estável entre pessoas do mesmo sexo.  Aliás, pode-se falar em união homossexual. Os seres humanos são livres e não escolhem a sua sexualidade. Apenas o obscurantismo justifica a ideia de que a homossexualidade seja um desvio de conduta. A atração mútua entre pessoas do mesmo sexo é algo tão natural e antigo quanto a existência da espécie e, ao que parece, também entre outras espécies.

    E o que vem a ser exatamente o casamento, senão um simples contrato laico (art. 1.511, do CCB) fundado na autonomia da vontade, entre pessoas maiores e capazes? Vamos deixar as ressalvas no campo religioso, solução que o art. 1.515, e seguintes, do mesmo Código, remete ao encargo de cada credo.

    Argumenta-se que o binômio é homem/mulher. Mas o que se dizer das mudanças de sexo autorizadas judicialmente e averbadas na certidão de nascimento do nubente? Ou da alteração de gênero no registro civil sem mudança de sexo por transgênero, como decidiu o STF? Ela é mais radical do que a própria transexualidade, na qual a pessoa sente tamanha dissociação de sua condição biológica que precisa mudar de sexo.

Sempre defenderei o direito de as pessoas fazerem o que quiserem de suas vidas em busca da felicidade, ressalvados prejuízos a terceiros. Se o casamento homossexual incomoda alguns, isso é como uma temporada chuvosa que se espera passar. É assunto que só diz respeito ao incomodado. Se o preconceito contra pernas tortas fosse sancionado, Garrincha não teria existido, mas ele foi “a alegria do povo”. Se houvesse regras inflexíveis na Gramática, José Saramago não teria ganho o Prêmio Nobel de Literatura.

    Quando promulgada a atual Constituição, não havia a “Parada Gay”, que hoje reúne multidões na Avenida Paulista; não havia o aglomerado jurídico LGBTs, assim como não se imaginava que alguém se intitularia “auto-sexual”. Não havia a Lei Maria da Penha, o crime de injúria racial, a Lei de Cotas raciais, a decisão do STF que enquadrou a homofobia como crime com base na Lei do Racismo, ou a que reconheceu o direito a mudança de gênero por simples ato de vontade do declarante. Diante desta realidade aceleradamente dinâmica, limitar o casamento a pessoas de sexo distinto, a mim, parece um anacronismo.

    Desde a edição da Resolução n. 175, do CNJ (que extrapolou formalmente), que obriga os cartórios a registrar os casamentos homoafetivos, em 2013, até 2016, foram assentados mais de 20 mil casamentos (dados em inúmeros sites na internet). O IBGE, que não possui dados atualizados, informa que em 2017 foram registrados 5.883 casamentos entre pessoas do mesmo sexo, enquanto, no mesmo período, houve queda de 2,3% nos casamentos heterossexuais. Isso é um dado impactante de realidade.

    Muito adequado ao tema da chamada “pan-sexualidade” é o artigo do psicólogo forense Paulo César Nascimento (https://bit.ly/2OFcdtq). Ele pinta um espantoso quadro verossímil da multissexualidade e dos desafios que ela provoca. Toda essa multiplicidade de brotações exigirá resposta jurídica. Não há como se esquivar disso.

    Cada época tem seus costumes e sua moralidade. A nossa não admite mais esse tratamento preconceituoso que distingue o casamento da união estável entre pessoas do mesmo sexo. De minha parte, se um humano quiser casar-se com um animal de cascos, nada tenho a opor, desde que o último consiga assinar o registro de casamento, ou, se for analfabeto, imprimir sua impressão digital. E quem acha que não se pode tirar divertimentos em coisas sérias, deveria ler “O Elogio da Loucura”, de Erasmo de Roterdam. Voto pelo não provimento do recurso com outros votos, de que o casal seja feliz para sempre”.

Textos tais quais estes distinguem duas justiças: a dos leguleios, que, por pobres de espírito e faltos de Ciência Jurídica, empobrecem o Direito; a do jurista sensato, que com saber jurídico, graça, poesia e erudição, faz da Justiça o que a Justiça dos esclarecidos deve ser.

SEXO POR COMPUTADOR

Um tema que cabe repetir, e que repito, por tão essencial. Todas as pesquisas ao redor do planeta chegam à mesma conclusão: sexo, fantasiar sobre a prática de sexo, está entre os pensamentos que mais passam pela cabeça de qualquer um de nós; no correr da existência, é o que mais nos habita a imaginação, é o devaneio que mais nos dá prazer.

O mundo inteiro deseja sexo, incluindo eu e quem me lê. Contudo, sexo é o que há de mais censurado. Parece que nada se vigia tanto, nada se controla tanto quanto o órgão sexual feminino. Mas, também as “partes” masculinas sofrem censura. Há uma geografia do corpo: todo ele pode ser exposto; “aquele” pedacinho, contudo, não. Sexo, não. Sexo não pode.

Investigações de laboratório confirmam o que sabemos na prática: a satisfação que o sexo proporciona. Nada é mais estressante do que a carência sexual; nada é mais prazeroso, física e psiquicamente do que a relação sexual. Não obstante, muita gente – mais gente do que se imagina – complica-se, seja para falar do assunto, seja para realizar o assunto.

Desconfio que esta seja a raiz, sabida mas não assumida, da maioria dos males emocionais da nossa época: comer em excesso, negação da vida pela depressão, noites na internet, abuso de drogas. Há um fundo de insatisfação sexual em tudo isso. Duvido muito que alguém fique cavoucando a web ou vá atacar a geladeira em estado de afeição e prazer sexual.

Penso que o conflito instalado na maioria das pessoas é entre o querer e o (suposto) não dever. O mundo, sobretudo após a ascensão de Constantino à condição de imperador romano (288 a 337), foi interditos e repressão. Em seu governo, a fé cristã se tornou a religião oficial do Império; com ela veio a restrição aos prazeres da carne e o elogio à abnegação e aos sacrifícios.

Por toda a Idade Média e mesmo durante o Renascimento as práticas sociais dominantes foram de sexualidade contida, ocultada, culpada. Não era incomum as pessoas açoitarem-se pelas ruas. Isso só foi controvertido, na Europa em 1789 (Revolução Francesa), no Brasil, em 1889 (República – a Constituição de 1824 declarava o catolicismo como religião do Estado).

A repulsa social mais ostensiva a este estado de coisas aconteceu apenas na segunda metade do século passado. Sobretudo a partir da década de 1960, a juventude – as mulheres principalmente – começou a romper uma ortopedia moral de séculos. O sexo deixou de ser “pecado”. Os desejos vieram à tona, venceram os freios conservadores e se estabeleceram.

Estes ímpetos de buscar o gozo da felicidade, contudo, se chegaram como solução para muitos, para a maior parte das pessoas vieram como problema. O fato de eu poder ver e sentir a liberdade de comportamento nos livros, no cinema, na televisão, no meu vizinho, no meu colega de escola, não quer dizer que eu a receba em mim com conforto, ou que eu a realize.

A liberdade está na minha frente, contudo, está no outro, não em mim. Já se pode, mas eu não posso. Uma parte pequena do mundo goza, a grande parte gostaria, mas não ousa gozar como se goza por aí. Por alguma razão sexo não se assentou nos hábitos gerais. Ou assentou-se, não, todavia, como liberdade apaziguadora, mas como conflito: menos prazer, mais ansiedade.

As pessoas procuram jeitos. Saem-se com podem. A internet parece ser evidência disso. Na solidão da noite, milhares de pessoas que não conseguem dizer pessoalmente de si e ouvir sobre o outro, seduzir e dar-se por sedução, vão para seus computadores. Algumas namoram nas telas, mas a maior parte mente para si mesma ou para alguém, ou namora com pornografia.

Encontro matéria já de uma década: “O Brasil é campeão mundial em acesso a conteúdo pornográfico na internet, com 55% dos internautas. A média mundial é de 41% – sendo que 58% são homens e 18%, mulheres” (Folhateen, 08jun09). Matéria relacionada informa que “63% dos jovens não discutem abertamente sexo em casa. Homens entre 18 e 24 anos consomem mais pornografia on-line: 61% dos internautas brasileiros” (FSP, 02jun10).

De lá para cá, uma reportagem (G1, 11ago15) que narra pesquisa cujos resultados não são pacíficos: “Mulheres brasileiras são as que mais veem pornografia – Levantamento põe Filipinas ao lado do Brasil (países no topo da catalogação de mais católicos do mundo) em 1º lugar”.  Ainda segundo o registro, “nos dois países 35% do consumo de pornografia é realizado por mulheres [a média mundial é 24%] e 65% pelos homens”.

Algo impede que certas vontades (envergonhadas) sejam realizadas na realidade, com outra pessoa, com declaração de gosto e consumação de ato. É impossível contar-se de todo, mas nos contamos menos do que é possível nos contar. Insegurança, angústia, culpa ou segredo (coisa a esconder) alimentam essa escolha. Se milhares de brasileiros, de jovens, inclusive, têm opção preferencial de gozo por computador, algo está errado.

Adultos deveriam pensar sobre isso por interesse próprio, pois sempre é tempo de reencaminhar as coisas. Pais deveriam refletir sobre isso no interesse dos filhos, pois sempre é tempo de encaminhar as coisas. Adultos ou jovens, inseguros, arredios e depressivos normalmente são vítimas de repressão. Às vezes, repressão que exercemos sobre nós mesmos. Que recomendaria eu a quem padece desse mal, além de psicanálise?

 Aos jovens: divirtam-se; sexo é mesmo legal. Aos adultos: repensem seus valores, suas bitolas ideológicas; algo aí não lhes está fazendo bem. Para com seus filhos: abram espaço ao diálogo, mas não se intrometam, não controlem. De algum modo haverá sexo. É um imperativo da vida. Nos meios libertários haverá mais sexo saudável; nos ambientes repressores, entre nada e alguma coisa, haverá onanistas na frente do computador.

O TEMPO NÃO PASSA, O TEMPO DE CADA QUAL

Sobre o tempo sempre se voltaram a física e a filosofia. Mais recentemente a genética pensa o tempo, estuda o desgaste do organismo, intenta prolongar nossa vida. Gosto de acompanhar o tanto que se produz de teoria sobre o assunto.  A mim, para o meu cotidiano, defini o tempo como o correr da vida. É que o tempo não corre; quem corremos somos nós. Vamos passando, passando, acaba.

Há outras definições, há equações, há filosofias, há até negações da existência do tempo. Não há discussão do existir da vida. Todo mundo sabe: ela começa, ela conclui. É o tempo. Esse tempo me fascina e me assusta. Fascina-me a ponto de me voltar a preenchê-lo, tanto quanto posso, que dele tanto gosto, com tão somente o que me apraz. Já, também, o tempo assusta-me de modo a eu investir tempo em encalçar mais tempo do que posso dispor.

“Mais do que um conceito único, o tempo se apresenta como uma força de inúmeras faces, e as discussões sobre essa força se estendem aos mais diversos campos de conhecimento, entre eles a biologia e a física. A vivência do tempo é uma condição de se estar no mundo, e é inerente a todos os seres vivos estar sob a ação dessa força da natureza” (Helena Mollo, http://migre.me/fssPQ). 

O tempo, pois, não brinca, não é gentil; é implacável, acontece, impõe-se. Em um dado tempo incumbe-nos praticar a vida, sofrer a vida, gozar a vida. Cada um tem um tempo, é o tempo de viver. O tempo se nos apresenta de muitas maneiras. Duas nos interpelam a biologia e a consciência: o tempo como um fenômeno da natureza (o tempo da física), o tempo como uma construção cultural (o tempo da filosofia).

Vendo-se o tempo como natureza, ele apenas é: trata-se de um dado do mundo, nem mais nem menos; enquanto fenômeno da natureza, não seria explicável, mas apenas constatável. Nós é que passamos por esse tempo que não acontece. De fato, não é o tempo que se vai, quem se vai somos nós.

Já, como cultura, “existem três formas básicas para se perceber a existência do tempo: a repetição das coisas (gotas caindo de uma pia, o ciclo das estações do ano); a entropia nos objetos e em nós (nosso envelhecimento biológico, a maçã apodrecendo); e notando a passagem relativa de uma coisa em relação à outra (uma maçã ‘envelhece’ mais rápido que um homem). Todas essas formas de sentir o tempo mostram-nos que a sua regularidade não é uma parte intrínseca da natureza, e sim que é uma noção fabricada pelo homem” (E.R. Leach, http://migre.me/fssJ4).

O tempo, pois, o tempo que é, o tempo natureza, não será ele que me vai envelhecer, que me vai matar. Mas, contraditoriamente, eu biologia, que, afinal, sou natureza, não tenho escapatória: um pouco adiante do agora eu vou acabar. No tempo da cultura, porém, eu tenho margem de manobra. Nesse tempo, interessa-me o relativo de mim mesmo com as coisas que me dão prazer. Seja: quero fazer as contas e dispor o que gosto para, na relação do tempo com o usufruto existencial do tempo, viver com prazer.

Essas coisas todas me ocorreram porque ouvi a mulher pedindo certezas afetivas ao sujeito. Não, não bisbilhotei a conversa alheia; ela me veio às orelhas, não tive como evitá-la. Dado o conteúdo, sim, escutei-a com gosto e compenetração. Parecia-me que a mulher carecia das palavras que o amor romântico impõe – nesse tipo de amor, importa o ato declaratório. O homem, que imaginei constrangido, contrapunha que amor é gesto, não declaração. Desconfiei que a coisa acabaria em dissonância afetiva.

Ele calou. Logo passou a indagar; ela respondia um tanto a contragosto: – Quanto vinho tomarei? – Hoje? Não entendi, não sei. – E músicas? – Falas da vida? Pelo resto da vida? – Quantos invernos viverei? – Não sei. O que você quer dizer? – Quero dizer que tenho um tempo para viver, um tempo para o qual eu dou extremo valor. – Mas… Onde queres chegar? – Bem, eu tenho um tempo e eu tenho escolhas… Tanto quanto pude, escolhi o melhor para trazer à minha vida, ao meu tempo. E escolhi viver o meu tempo com você.

Houve silêncio no tempo de cada um, não no tempo dos dois, que tempos não se misturam jamais. Não me permiti voltar-me para tomar a cena; seria demasiado impertinente. Mas fui minudente na imaginação: ela emudeceu, entendeu-se na vida dele, tomou-se de carinho; pôs-se meiga e triste, mas o sorriso era contente. Pensou no tempo de cada qual na vida que convivem. Seus olhos trouxeram lágrimas e se puseram a brilhar. Ela intuiu que era amada. Ele demorou-se enternecido com o jeito como ela o percebeu.

IGNORANTES IGNORAM

A ignorância não é um miasma ameaçador, uma emanação de um mal que nos contamina. Nada disso, ela é o nosso estado de natureza. Nós nascemos ignorantes. Deixa de ignorar as coisas no mundo quem acessa ou recebe os saberes que determinada cultura acumulou e depurou.

Há quem saiba algumas coisas e sabe que as sabe. Há quem saiba algumas coisas, sabe que as sabe e sabe que existem muitas outras que não sabe. Algumas pessoas sabem umas coisinhas e, ignorantes da vastidão de saberes no mundo, creem que sabem tudo. Sabem nada.

Ignorantes. É meio pedante imputar ignorância a alguém. Os rankings internacionais sobre educação, todavia, nos deixam mal sempre. Não é coisa eventual; é “sistemática”. Quer dizer, por muito tempo, em todas as áreas, vamos mal nas medidas internacionais de conhecimento.

Sim, estou bastante ciente de que “todos detêm algum saber e que todos os saberes são válidos”. Falácia do politicamente correto. De fato, descabe uma hierarquia: há culturas diversas com saberes diversos. Mas é manifesto que há quem acumule saber e há quem aufira saber minguado.

O saber é um ativo valoroso. Os saberes das pessoas que me circundam qualificam a minha vida.

A interlocução qualificada com o próximo nos faz bem. É cativante dialogar, oferecendo e recebendo ideias, pondo-se os interlocutores concordes ou discrepantes, com fundamento.

Desenvolver uma conversa, contudo, ademais de ser uma arte e pedir uma etiqueta, é um ato intelectual que necessita de certos saberes. Está certo, pessoas mais toscas comunicam-se, mas a fala simplória não dá conta do gesto dialógico. Comunicar é menos que conversar.

Os brasileiros não conversamos bem. Nas redes sociais postamos ódio. Não é por acaso. Dados oficiais dizem que somos muitos os analfabetos das letras em geral e mais ainda os analfabetos funcionais. Boa parte dos que estudam não se saem bem em qualquer aferição que se faça.

Quem não se instrui ou é instruído toca bem as coisas da própria vida? Será que alcançou apuro para os gostos e desgostos da existência? Gosto não se discute? Discute-se, aprende-se, aprimora-se. Educa-se para a gostar dos gostos acurados, que cada cultura tem os seus.

Culturas tem bons e maus gostos. E se o país é dividido a ponto de segmentar gostos? O Brasil tem gostos segmentados: um gosto para a classe A; outros gostos para as demais classes. Estudos sobre consumo dizem isso. Nas artes, na roupa, na comida, há um modo muito particular de cada segmento social consumir e gozar o consumido.

Preconceito? Não. Fatos tristes. Trata-se de reconhecer as consequências de séculos de exclusão social. Quando os pobres arranjaram reservar algum dinheiro (com o fim da inflação), passaram, por exemplo, a comer, conforme a sua (falta de) educação, coisas prejudiciais à saúde (sobre o assunto sobram dados na internet). Ignorância igual mau gosto.

Gosto é produção histórica, como tudo o que é cultural. Pessoas educadas receberam informação suficiente para discernir e formar gosto (claro, com conteúdos de subjetividade e idiossincrasias). Pessoas estudadas estão advertidas das referências que importam. Pessoas ilustradas, então, sabem viver coisas que interessam, podem viver melhor.

Preconceito novamente? Novamente, não. Todos declaramos a relevância da educação.

Reconheçamos, pois, a sua importância. Ademais, se ao nosso derredor pulula a ignorância não é por imprestabilidade de ninguém, mas porque, desde sempre, nossa classe dirigente furtou oportunidades ao povo, particularmente as de educação adequada.

Não é difícil compreender a questão individual. A minha existência será tão boa e inteligente quanto sejam boas e inteligentes as existências de meus entes relacionais. Ignorantes ficam circunscritos ao não saber. As percepções do mundo abrem-se pela educação. O saber apetrecha a mente para as leituras das sutilezas do mundo.

Preocupa-me a dimensão coletiva do assunto. Nossa ignorância nos deixa com chances truncadas.

Como fica um país cujos dados oficiais reconhecem a bancarrota da educação pública? Fica de gosto ruim, conversa mal consigo mesmo. Boa parte do Brasil, ou está alienada, ou está destilando rancor. A ignorância nos autoriza o que temos de pior.

Os espertalhões não se perdem nisso; antes, locupletam-se.  Não nos faltam manobreiros a extrair ganhos desse infeliz estado de coisas. Dentre os países injustos em distribuir renda, estamos no fim do rol porque há quem transforme ignorância em meio de apropriação dos recursos nacionais. A deseducação, como negócio, para alguns, vai bem.

E a nação? A nação tem menos sabedoria, menos aprimoramento de seus valores e instituições.

Tem menos produtividade, menos interesse no meio ambiente, menos criação artística e científica, menos progresso. Menos diálogo. Onde as classes dirigentes expropriam as chances do povo, a vida mesma é mais tacanha e até mais curta.

Ignorantes não sabem que não se sabem. Ignorantes ignoram. Não nos sabemos. Acaba que sobramos todos com uma cota de ignorância, porque nossa vida é neste lugar de gosto discutível e falto de ideias para trocar. Os que estão bem, ou ignoram o estado geral da nação, ou se aplicam em conservá-lo como está. E não estamos bem.

CARPE DIEM, MAS HAVERÁ AMANHÃ (NÃO SEGUNDO O CORINGA)

Filosofa o Coringa, (filme campeão de bilheteria, direção Todd Phillps, 2019), um vingador dos humilhados sociais: “É muito difícil ser feliz o tempo todo. Ainda que a comédia seja subjetiva, o mundo aí fora não está fácil. Algumas pessoas se divertem pisando no sonho das outras”.

“Quando você quer alguma coisa, todo o universo conspira para que você realize o seu desejo”, ensina Paulo Coelho do alto dos seus 300 milhões de livros vendidos. Essa cifra comercial confirma que os dizeres desse autor são, por menos, levados em consideração.

No meio dessas leituras da vida, “Colher o Dia” (tradução literal de Carpe Diem, o dizer de Horacio Flaco, poeta e filósofo latino, que aniversariará 21 séculos) é bom conselho. Para melhor compreendê-la, situo a expressão no corpo da sentença: Carpe diem, quam minimum credula postero.

O “colher” das Odes de Horácio chegou-nos popularizado como “aproveitar”. O provérbio, então, assentou-se como “Aproveite o dia de hoje e confie o mínimo possível no amanhã”. Daí, reduziu-se a Carpe Diem, ou a Aproveite o Dia, com as sequelas que toda redução de pensamento traz consigo.

O pensamento do Coringa está conforme a época corrente: a felicidade é fugaz; os sentimentos emergem da subjetividade; o mundo é uma guerra por ocupação de posições; somos produção de poder; o individualismo e o arrivismo predominam, preenchendo a ética da vida cotidiana.

Eis o mundo que decorreu da Modernidade (considero que sua consolidação se dá com a Revolução Francesa, 1789): o advento do indivíduo e a produção da individualidade. Não somos mais vontade divina (crença do Medievo); somos dono do nosso destino (apanágio do Moderno).

A concepção de Paulo Coelho é uma corruptela do pensamento Estoico. Essa Escola acreditava que o mundo era Cosmos. Zeus, o deus máximo grego, teria posto ordem no Caos, organizando o mundo. A própria ordem do Universo, então, causaria o lugar e a condição de cada um de nós.

A frase famosa “Conhece-te a ti mesmo”, inscrita no portal de Delfos (e não dita por Sócrates, como propagado) não é uma sugestão de prospecção psicanalítica, mas uma orientação de conformidade às coisas como ela são: descobre o teu lugar, conforma-te e faz o melhor que podes.

E o Carpem Diem? Horácio sabia muita coisa; era um erudito. Mas sua matriz de pensamento era o Hedonismo, escola de Epicuro. Para esse filósofo, a única coisa que interessava na vida era o prazer. O resto não valia nada. Mas Epicuro não falava do prazer barato.

No período helenístico, tempo de Alexandre, o Grande, pululavam escolas em Atenas: a de Platão se nomeava Academia; a dos estoicos, Pórtico, a de Aristóteles, Liceu; a de Epicuro, Jardim. Os alunos praticamente viviam nas escolas. O Jardim vivia em festa.

Epicuro foi uma espécie de hippie (vida contracultural). Valorizava o prazer, mas sua ideia de prazer se fundava na sensatez. Passar-se no desfrute da vida acabaria em desgosto. Epicuro ficou mal falado porque os cristãos o difamaram por séculos, dado que era ateu.

Horácio, sendo hedonista, também foi desabonado pela tradição católica. O “resumo” da sua doutrina, o Carpe Diem, só se popularizou com Sociedade dos Poetas Mortos (filme dirigido por Peter Weir, 1989). Carpem Diem, desde então, vulgarizou-se em tatuagens e como gozo da vida.

Gozo produtivo, contudo, não esbórnia. “Extrair a essência da vida” (John Keating, o professor do filme). Epicuristas defendiam a moderação. Pregavam que os excessos traziam desprazer. O gozo inconsequente do imediato é temerário. Não eram, pois, imprevidentes sem amanhã.

A vida é mediata: em parte decorre da nossa vontade, mas noutra parte é incidida pelas contingências da existência. Prepondera a imprevisibilidade. Então, Carpe Diem, volta-te menos ao amanhã, mas só haverá bom amanhã se amanhã houver condições de curtir o dia.

O GOZO DO HOJE

Esta frase corre as redes sociais e se estabeleceu como referência sobre o gozo do presente: “Só existem dois dias no ano em que nada pode ser feito. Um se chama ontem e o outro se chama amanhã, portanto hoje é o dia certo para amar, acreditar, fazer e principalmente viver” (Dalai Lama).

 As pessoas chamam o sujeito de “dalai lama”. Acho muito engraçado dizer-se efusivamente o que não se sabe. Duvido que a maioria dos que o citam saiba que significa “sacerdote supremo”, título de Jetsun Jamphel Ngawang Lobsang Yeshe Tenzin Gyatso, que é seu nome.

Não gosto de quem, de qualquer modo, em qualquer lugar, sob qualquer pretexto, se tem por supremo, e lhes dedico a minha suprema indiferença. Mas a frase em si (apotegma, para quem tem o “supremo” por sábio; o anexim para quem o sacerdote é mera figura popular) é o que quero discutir.

Considero que estas afirmações que “ensinam” que o hoje deve ser o momento de viver a vida – ocasião em que algo “pode ser feito” – são desconectadas da realidade. Ninguém pratica isso, mesmo que curta a frase, publique-a em suas redes sociais e se declare adepto da ideia. 

O dalai é o chefe do lamaísmo, um budismo xamanístico (mágico-religioso). Como xamã, intermedeia as relações entre a vida profana (que eu vivo e gosto) e o que seria a dimensão sobrenatural que os comuns não percebemos (acho essas formulações explicativas do mundo bem delirantes).

Para essa crença, o hoje é o que importa. Isso cabe na tradição lamaísta porque sua concepção da realidade recomenda a existência contemplativa e veda a intervenção nas decorrências naturais: o mundo é como é, contempla-o, sente-o, deixa-te tomar por ele, mas não interfiras nele.

Edito publicação de Eliana dos Santos no Facebook de Larissa Campanille: “Isso que é ser mestre, faz você se interessar por caixa de papelão, logística de gado… Até onde vai com tanta inteligência? Ao final de uma palestra você agradece por fazer parte de todo esse ensinamento”. 

E segue o comentário: “Ele faz com que você queira saber mais. Inteligência pura…” Então, refere Yukio Takada: “‘O mundo é formado não apenas pelo que já existe, mas pelo que pode efetivamente existir’”. E arremata: “É isso o que ele faz com seus alunos: querer saber mais”.

Isso se coaduna bem melhor com a nossa realidade. Temos, no cotidiano, muito mais preocupação em obter as condições que são aludidas pelo professor Takada do que em nos entregar à mera curtição do dia, sem considerar que temos passado e que viveremos, de fato, no futuro, não é?

Bem sabemos que não há gesto nosso no presente que não seja informado pela nossa história pessoal e coletiva, e não há um único dia em que não pensamos sobre o futuro, em que não investimos nele, em que não o comprometemos. Muitas vezes até o gozamos antecipadamente.

A cultura contemplativa do mundo, fora do interior da Ásia (ou na tradição estoica dos antigos gregos e dos cristãos primitivos, que a repercutiram, ensinados por Paulo de Tarso), é muito legal para o fim de semana. Vou a um templo, dou-me por contemplante das coisas todas e me alivio.

Um alívio puramente catártico, para gozo passageiro. Na realidade da segunda-feira retorno ao batente, planejando meus sonhos, apostando sobre o devir, buscando condição para mim e para meus entes queridos. Ainda bem, aliás, que é assim, ou a História não se movimentaria.

Dificilmente nos declararemos em final de construção da existência. Não conheço quem, gozando de saúde, dê-se por obra acabada e se ponha num arquivo existencial. Viver é um estado constante de contabilidade do passado e desenho de panorama futuro. O presente é fugacidade, só.

Todos queremos um futuro melhor, portanto, ao contrário de Tenzin Gyatso, defendo que amanhã é, tanto quanto foi ontem e é hoje, o dia certo para amar, acreditar (ou manter uma dúvida metódica), fazer e, principalmente, viver, pois quem não vive o porvir já está falecido e não se apercebeu.

MARCADORES DO PENSAMENTO MUNDIAL

Procurando-se pelas melhores universidades do Planeta (sim, temos 11 listadas entre elas – https://bit.ly/2kvytel), destacadas sobretudo pela robustez da produção acadêmica, sempre se encontrará, dentre as primeiras colocadas nos tantos rankings publicados, o Massachussetts Institute of Technology, conhecido mundialmente como MIT. Se as outorgas de prêmio Nobel indicam relevância em publicação, é de se saber que 78 professores do MIT já foram agraciados com ele. As pesquisas publicadas pelo Instituto têm, pois, credibilidade.

Bem, o laboratório de mídias do MIT esquadrinhou a História, mapeando a produção intelectual registrada, intentando nomear as maiores influências da cultura universal. “O projeto Pantheon coletou e analisou dados do mundo todo de 4.000 a.C. até 2010. Devido à diversidade da área, o projeto estará sempre inacabado. O Pantheon foi construído a partir de dados coletados na Wikipedia e na Freebase e de um livro sobre artistas e cientistas que mais contribuíram para a humanidade de 800 a.C. até 1950” (FSP, 15mar14, editado).

Compulsando-se as páginas do Pantheon (http://pantheon.media.mit.edu/) encontram-se informações bastantes interessantes. Destaco e comento algumas. Entre os 10 principais influentes de todos os tempos, seis são gregos, quer dizer, a solidez do pensamento de filósofos que viveram há cerca de 25 séculos permanece inabalável. Entre os 20 primeiros, há seis italianos, e eles são da antiga Roma ou do Renascimento (que revivia o pensamento da antiga Grécia e da antiga Roma), mostrando o quanto a Tradição Ocidental deve ao helenismo.

Para quem não gosta de filosofia, despreza políticos e desconhece literatura, é relevante saber que entre os 100 mais destacados há 23 políticos, 16 filósofos e 14 escritores, o que indica o grande valor de seus temas. Já para os religiosos, a notícia recomenda humildade, pois Jesus Cristo fica em terceiro lugar, perdendo em importância para Aristóteles e Platão. Aliás, na primeira centena apenas 11 líderes religiosos estão listados, o que relativiza bastante a pretensão de “condutores da verdade” que os crentes supõem ser sua missão.

Quando se analisa o país de nascimento, se sobressaem os Estados Unidos da América. A União Europeia oferece a maior contribuição entre os 10 primeiros, com intelectuais de oito países. O Brasil não faz um papel ruim, ficando na 15ª posição. Pode-se perceber, relativamente à origem das pessoas destacadas, que cinco países concentram mais da metade do total delas, o que explica muita coisa sobre mentalidade, poder, riqueza e influência.

Ao se verificar a contribuição das mulheres, podem-se relevar alguns dados e tirar algumas conclusões, o que faço com certa insegurança, pois não vejo uniformidade nas informações. Na média, contudo, os países que combinam mais liberalismo e menos incidência religiosa no governo têm mais mulheres listadas. Os EUA, por exemplo, apresentam 24,04% de mulheres; a Austrália, 32,09%. Já Cuba exibe 6,67%; os Emirados Árabes, 0,0%.

Relaciono os nomes que compõem a equipe responsável pelo projeto, para que se tenha a devida noção da multiplicidade de nacionalidades que habita o MIT (e as melhores universidades norte-americanas), o que é indicativo da tolerância vigente em ambiente educado, ou, pelo menos, no ambiente educado dessa Universidade: César Hidalgo, Amy Zhao Yu, Kevin Zeng Hu, Ali Almossawi, Shahar Ronen, Deepak Jagdish, Andrew Mao, Defne Gurel, Tiffany Lu.

Pluralidade de nações, de gênero e, seguramente, de mentalidade: três mulheres, seis homens, todos muito jovens, nenhum sobrenome estadunidense típico. Vejo um mundo vário em etnias, sexos e culturas reunido em um centro universitário genial para se estudar e se compreender. Apesar dos desastres causados por atrasos machistas, religiosos e étnicos, há quem esteja fazendo civilização. Em tempos de espantalhos fascistas, compreendi que devia repartir essa notícia.

AO PÓ RETORNARÁS

Não se trata exatamente de ter medo. Também não me parece que seja raiva. Mas isso, de que eu vou desaparecer do mundo, não me agrada muito. Talvez seja o que eu sinto: certa tristeza de fundo por saber que vou morrer.

Se eu acreditasse nessas coisas em que muitas pessoas acreditam ou fazem de conta acreditar, se eu pudesse me enganar como tantos conseguem, tudo ficaria mais fácil, haveria uma alegriazinha besta de vez em quando.

Eu até aceitaria euforias oficiais: saracotear no carnaval ou torcer aos gritos por algum time de futebol. Mastigo uma inveja enorme de quem consegue, mas nunca garrei gosto: se me vejo nessas coisas, vejo que não vou bem.

A Zelig (Woody Allen) só lhe doía morrer porque não concluiria um livro sobre o qual mentira. Disse que o houvera lido, mas jamais o lera. Não é o bastante para lamentar a morte, ainda que todo motivo seja motivo para não morrer.

A mim me importuna o assunto em si. Eu gosto tanto da vida que me aborrece essa sina de morrer. Um filósofo chamado Martin Heidegger considera que somos um “ser-para-a-morte”. Então, haveria um nada a fazer.

É claro que Heidegger tem razão. Não obstante a razão filosofal, nisso, sou de outra turma: um escritor de nome Elias Canetti vê na morte um inimigo que avança contra nós e que deve ser recuado. Propõe o combate. É épico.

Há outros pensadores com outras ideias. Eu tenho a morte como algo que não enxergo, mas pressinto: a funesta está por aí. Ela me espera; eu não quero ir. É isso: não sei detê-la. Tenho que refutá-la, mas não sei saber como.

E o mais terrível é não saber como saber. Ninguém sabe. A insurgência contra os limites implacáveis da vida me lembra as opiniões assentadas sobre o tema. Nelas encontram-se fundamentos que eu classificaria em três tipos:

Os de fundo religioso resolvem a questão apostando em outra oportunidade; os fatalistas afirmam que vamos morrer e pronto; os esforçados defendem que a vida deve ser bem vivida, que o só havê-la já enseja se deleitar.

Os religiosos, eu os tenho sob suspeita: desesperam-se quando estão perto da feliz outra chance, ou se um ser amado a teve (afora o católico Agostinho). Os fatalistas são os mais racionais, mas não me animam a existência.

Com ressalvas, fico com os esforçados. Sua proposição colabora com a vida, mas aí mesmo é que não quero morrer. Faço o meu contentamento e morro? Não, não me agrada. Quero seguir no desfrute do bom de viver.

A morte não é nem mesmo o reverso da vida. A morte é nada. Tão quanto não
éramos nada antes de nascer, não seremos nada depois de morrer. A morte é só uma inimiga inevitável: eu terei de encontrá-la; ela me vai matar.

Há duas atitudes possíveis diante dessa fatalidade. Uma é admitir que ela está lá e que um dia me vence, mas realizar o impossível para postergá-la. Então, adotadas as carecidas cautelas, deixar de lado a apreensão com o fado.

A outra é morrer por antecipação: transcorrer a vida rendendo homenagem à morte: embirrar-se e não fruir as coisas que os sentidos permitem. Ocupar-se em demasia com o desfecho imperativo da vida é desperdiçá-la.

Então, construir-me como se para sempre, como obra de arte (Nietzsche). A educação sofisticada dos sentidos é o melhor investimento do tempo de viver. Isso, durante a minha vida, nem a morte me vai tirar. Se tentar, reajo.

Compreendo sentidos como as faculdades tipicamente humanas de perceber, apreender e vivenciar as coisas, atendendo a mais do que os instintos e fazendo além do que cumprir normativas morais não refletidas.

Os sentidos são a minha hipótese de ter prazer com o corpo, de larguear o intelecto: pensar-me, saber-me, gozar-me. Tomo domínio do que a vida fez de mim e, sobre o que quer que tenha feito, faço-me meu criador (Sartre).

Construo a minha arte; invenção minha de mim: dou-me um modo de vida e vou vivê-lo. Ao fim do meu tempo cotejarei prazeres e pesares: realizarei um encontro contábil dos ganhos e gastos do gozo da minha existência.

Os gastos serão ralos, pois não apliquei em dissabores de travanca. Alguns ganhos: os prazeres com que me deparei foram celebrados. Então sim, e já isso nada me importa, sobrará pó, que ao pó retornará.

FICA, RELAXA E GOZA

Há os costumes. Muita gente se desconfortará se der um passo fora deles. Até pouco tempo, em toda cidade que se prezasse havia uma chefatura de polícia especializada designada delegacia de costumes. A margem de manobra era menor, e o delegado era o vigilante moral mais ativo.

Mesmo nos dias de hoje, as sentenças pomposas dos juízes pudorentos costumam apelar aos bons costumes. Como o mundo é vário e os costumes são muitos, nunca entendi como, dentre eles, se reconhece exatamente quais seriam os bons e quais seriam os maus.

Se forem procuradas concordâncias ideológicas ou mesmo utilitárias, não se afinarão consensos: jamais universais, nem mesmo nacionais; talvez alguns regionais. Então, quem pode – o político, o religioso, a mãe, o marido ou o patrão – impõe aos outros os costumes que lhe são convenientes.

Dizendo de modo distinto: como não há uma razão teórica (ou moral) sustentável para defender o que seriam os bons costumes, a questão é resolvida nos limites da razão prática: fica estabelecido que os bons costumes são os meus, e os maus são os dos outros. E estamos combinados.

Estaria tudo bem não fosse o fato de que ninguém combina coisa nenhuma e poucos percebem que os costumes podem ser uma armadilha de dominação. Cumprimo-los sem pedir conta de suas origens, de seu significado, ou de sua conveniência. A quem serve o costume que preservo?

Quem já refletiu sobre os modos de pensar e agir do seu grupo social, ou mesmo os seus próprios? Se indagadas a respeito, as pessoas em geral acabarão dando a resposta mais alienada possível: “Ora, porque sim.” Chego a um assunto controvertido: sexo, ou os costumes sexuais.

Suponho concordância sobre inexistir coisa mais pensada, falada e buscada do que sexo. É tema que não se aquieta: não há quem não o goste e não o queira. Assim, cabe dizer: além de pensar, falar e buscar, a humanidade gostaria de praticar muito sexo. Muito mais do que se pratica.
 
As coisas, pois, estariam resolvidas; contudo, existe outro lado: não há nada mais cercado, censurado, vigiado do que sexo. Nem após os avanços dos anos 1960 a questão foi solucionada: poucos tomaram mais liberdade, muitos se fecharam numa onda conservadora surpreendente.

É necessário observar que o cerco ao sexo é uma tradição semita (judaica-cristã-mulçumana). É um costume, só um costume. Por exemplo, suecos e holandeses não são assim, têm outra tradição; índios não dão importância ao assunto; romanos e gregos tinham outro comportamento.

Cada um que use a cama tanto, como e para o que bem entender, cada um que se resolva, gozando ou reprimindo seus desejos, mas que saiba que mais ou menos liberdade nos afetos é apenas mais ou menos submissão a um costume que, pensando, pensando, não tem muito sentido.

Cogitando o tema, ainda que pejados da moral dominante, confessemos: pecamos, ou gostaríamos de pecar. Confissão e pecado – palavras de ordem religiosa – são inadequadas para dirimir a questão. Pensemos sociologicamente o conflito: nós mudamos, ou desejamos mudar.

Ao curtir o corpo, buscando prazeres no ficar com outros corpos, livramo-nos de amarras morais: reformamos os costumes, produzimos transformações civilizatórias. Se alguém for contra, peça-lhe um argumento razoável, ou sugere-lhe, fazendo-lhe o mais puro bem: namora, relaxa e goza.

A CONFORMAÇÃO DO OUTRO

Sempre me dirão que comportamentos são maleáveis, que alguém pode transformar-se noutra pessoa. Por método, admito a possibilidade, mas mitigo a admissão: é possível, mas não é provável. Os elementos constitutivos da personalidade são estáveis e informam conteúdos e formas de ser.

 As pessoas não “caem” na sua maneira de viver a vida. Primeiro, são situadas (ou faladas) no mundo, principalmente pelos pais; depois, vão-se situando: lutando um tanto, acovardando-se outro, compondo-se com o derredor, ajeitam-se. É dizer: amoldam-se na lenda que criam de si.

Lenda nossa sobre nós mesmos é uma maneira minha de nomear o que Freud chamou de fantasia e Lacan ensinou com fantasma. Essa narrativa que construímos é fundada na invenção da nossa história: supomos ser o que nos convenceram que somos mais o que nos persuadimos que somos.

Esse conto estabelece um território mental, que, com dores e sabores, torna-se nosso campo conhecido de viver. Nós o sabemos e o supomos seguro. Nos acomodamos. Poucos ousariam e raríssimos conseguiriam aventurar-se fora do mapa indicativo que têm de si próprios.

Para a compreensão psicanalítica, essa experiência seria bastante improvável. Nosso mapa indicativo é traçado pela nossa psique, que tem vontade própria, dado que nossa vida mental abriga uma dimensão inconsciente. O inconsciente, que incide sobre nossas decisões, não é controlável.

Os mecanismos de preservação do inconsciente, ademais, são atentos a mantê-lo como está, porque mudança dá origem a ansiedade. Mudar é dirigir-se para um lugar mental desconhecido. O não sabido implica risco, então, entram em funcionamento sistemas de contenção de aventuras.

No geral das vezes, a vontade impetuosa fenece sem gesto, o sujeito permanece nas suas adequações. Repete-se. Os sujeitos tendem a se repetir. No casamento vencido, no emprego desagradável, mesmo em algum desgosto consigo, arranja pretextos. À custa de si e contra o mundo, fica ali.

Claro, uma situação incontornável: já não se lida com um sujeito, mas com os sintomas de um sujeito. Seus conflitos emocionais – neuroses – expressam-se por sintomas, recursos doentios necessários para seu relacionamento doentio consigo mesmo e com suas circunstâncias doentias.

O humor do indivíduo, nesse modo de existir, se vai turbando. Em geral inconscientemente, ele se aliena das circunstâncias: ou se aniquila, embotando o seu ser, ou hostiliza a quem atribui cerceamento; preserva-se, mas não liga importância com o mundo do qual não gosta e que não gosta dele.

Adianto esses dizeres para alcançar um assunto: convivências. Nas convivências amorosas, sobretudo, costuma-se querer que o outro mude: que o outro seja, ou deixe de ser; faça, ou deixe de fazer. Quero o outro, mas quero que o outro seja e faça o que eu quero, não o que ele é e faz.

Não confio na possibilidade. Lembro o já afirmado: é improvável alguém estruturado psiquicamente de determinada maneira mudar, menos ainda porque outro alguém o quer. Não é tão simples impor mudança. Ademais, talvez o outro em questão simplesmente goste-se como é e deseje ficar como está.

Além disso, intriga-me a ingenuidade, ou a petulância, ou ambas as coisas, de quem cobra mudança. As partes se conhecem, acompanham-se, recebem-se como são. Conferem-se e se aceitam. Se a convivência se consolida, só então, iniciam-se as ingerências nas peculiaridades do outro.

Ora, o outro se apresentou, ou foi buscado, tal e qual era e, supostamente, é. Foi identificado na intimidade e se o aceitou e à sua feição singular. Mediu-se alguém que, no tanto que se pode dar, deu-se a saber. Bem, esse alguém, se tirado do seu modo de ser, não será mais quem é, ou quem foi.

Certos egos, egos ávidos, querem em tudo a projeção de si mesmos, a quem única e verdadeiramente amam. Egos narcísicos são assim: não apreciam a diferença, não têm prazer nas possibilidades tão abundantes das relações afetivas, só prováveis nas afinidades com desiguais.

Quem deseja a própria imagem e semelhança não deseja a mais ninguém. É verdade que esses tipos acabam, por tão solitários, não se encontrando, mas colidindo consigo, e, pior que tudo, tendo o mau gosto de nem de si se gostarem, de só gostarem da imagem idolatrada que projetam de si.

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