Cumplicidade, conversa, possibilidade amorosa (Coautora: Karine Vieira)

Os termos da vida em comum; a comunhão de propósitos; as reciprocidades inteligentes e sensíveis. Esses são fatores sine qua non de qualquer parceria. São, portanto, também, condição elemental da vida amorosa.

A questão é: tais coisas acontecem, ou são feitas acontecer? Há quem creia e defenda com robustos argumentos que temos demasiada pouca gerência sobre os nossos encontros com o mundo, na expressão de Espinosa.

Já a vida como obra, não como acaso, ou de obra sobre o acaso: Nietzsche. Ele quer que o acaso seja só humanidades em acontecimento, e que seja tomado para ser matéria da ação sobre o mundo e sobre o viver mesmo.

Almejo mais: aspiro à inteligência interferente nas possibilidades. A vida depende dos meus encontros espinosianos com o mundo e da empolgação do acaso nitzscheniano, certo. Mas eu quero para mim alguma gerência disso.

Creio que se me dou um tanto de coisas e me excluo de outras tantas, amplio chances de, junto com o acaso, me proporcionar bons acontecimentos. Disponho de uma razoável margem de liberdade, logo, de ação (Sartre).

O que faço com o que foi feito de mim? Minhas escolhas e as cautelas e ousadias cometidas para alcançá-las materializam consubstanciam esse fazer. Nas relações amorosas, menos que as paixões, estão as atitudes eletivas.

Paixões são sintomas de suspeitosas demandas minhas, unicamente. As eleições são apaixonantes sem serem paixões brutas. De outro modo: quero paixão pelo meu tipo, por quem eu possa ter bons termos de vida carinhosa.

Não falo de amor como contrato. Penso em que vida eu me faço viver. A que vida eu me levo para ter vida existida? Um existencialista considera que o animal humano se faz ser humano quando está senhor da sua existência.

Só quem tem noção de si consegue fazer da vida uma obra de arte (Nietzsche). Uma vida tal exige condições de estar no mundo. Se existência precede a essência, preciso me dar existência que apure a essência.

Talvez a consideração anterior a todas seja mesmo: com que tipo de gente eu quero estar no mundo? Com que tipo de pessoa espero levar vida emocionada que seja, par e par, artisticamente emocionante?

Cabe procura assim como cabe esperar pelo acaso. A procura é mais que empolgar o acaso; é gerenciar o tanto possível a parte afetável do rumo das coisas. A procura permite e até recomenda escolhas.

Agora, a vida como construção. Edifica-se sobre o que vem da cata selecionadora. As partes combinam a vida, no tanto que a vida é combinável: denominador comum; ajustes de propósitos; sintonias inteligentes e sensíveis.

Teoria dos conjuntos, diagrama de Venn: uma pessoa, outra pessoa, dois conjuntos. Jamais haverá um casal, porque a relação entre dois conjuntos ou duas pessoas não as faz unidade, mas estabelece área de intersecção.

A relação entre pessoas ou conjuntos é limitada pelas fronteiras do denominador comum. Nas relações amorosas as partes abrem mão de parte da soberania pessoal em prol da vida mútua, mas não abrem mão de si.

Ninguém conseguirá dispensar o ego, porque não se tem um ego, mas se é um ego. Como se anular psiquicamente? Ademais, há um mínimo eu (Lasch) a ser mantido em tempos difíceis, e convivências são sempre tempos difíceis.

Concedemos, quando muito, pequena parte de nós à relação. O mais do ego não interage, insubordina-se a obrigações, desconsidera limites. Talvez o sujeito advertido (Lacan) dessas coisas dessas coisas dê conta. Não sei.

Quem sabe a palavra mais adequada para possibilidade da relação amorosa seja cumplicidade. Quiçá os que se façam cúmplices de um mesmo desígnio de vida possam materializar seu desiderato.

A cumplicidade para levar a vida como ela é (Rodrigues) solicita amantes artistas. A realização amorosa é fazer artístico. O utensílio dessa arte é a conversa. A conversa é a ferramenta amorosa. Sem conversa não há amor.