O poeta Cabral

 

Neste domingo, 9 de outubro, pranteamos a memória de um dos maiores poetas brasileiros, o pernambucano João Cabral de Melo Neto.
 
Com um jeitão humilde e cativante, ele era, na verdade, herdeiro de uma genética literária riquíssima: primo de Manuel Bandeira, pelo lado paterno, e de Gilberto Freyre, pelo lado materno. 
 
Sobre si mesmo, ele disse: “Quem mais influência exerceu sobre mim, teoricamente, foi o arquiteto Le Corbusier. Por muitos anos, ele significou para mim lucidez, claridade, construtivismo. Em resumo: o predomínio da inteligência sobre o instinto”.
 
Por aí se vê a razão de se lhe alcunharem poeta-engenheiro, na verdade um oximoro.
 
Sua obra é envolta do mais absoluto rigor estético, toda ela feita de rígida contenção e objetividade, purgada de todo lirismo. Nele, o poeta já não é um sonhador, mas sim um atento e crítico observador do real, tendo como fonte inspiradora a própria realidade revelada pelo cotidiano.
 
Mas é ele próprio quem relativiza essa camisa de força: “Sempre evitei falar de mim, falar-me. Quis falar de coisas. Mas na seleção dessas coisas não haverá um falar de mim?”.
 
De fato, a poesia de João Cabral se caracteriza por duas vertentes: uma primeira linha, cuja tendência se volta para a metalinguagem, abrangendo uma temática mais cerebrina, racional, de investigação do próprio “fazer poético”, e outra, chamada de participante, que tem o Nordeste como sua temática principal.
 
Como não perceber um certo confessionalismo no homem que soube desenhar em versos cálidos a saga do retirante nordestino, quando ainda não havia passado dos 35 anos de idade. É ele mesmo quem explica: “Mesmo sem querer, fala em verso quem fala a partir da emoção”. Emoção arquivada da infância, quando Cabral conviveu em meio aos canaviais cultivados pela família de donos de engenho no interior pernambucano.
Cabral foi, sem dúvida, o nosso mais forte concorrente ao prêmio Nobel, com diversas indicações dos mais variados segmentos de nossa sociedade. Veja nestes trechos do poema “Morte e Vida Severina” se ele não merecia a láurea máxima da literatura:
 
O meu nome é Severino, / como não tenho outro de pia. / Como há muitos Severinos, / que é santo de romaria, / deram então de me chamar / Severino de Maria; / como há muitos Severinos / com mães chamadas Maria, / fiquei sendo o da Maria / do finado Zacarias.
 
Somos muitos Severinos / iguais em tudo na vida: / na mesma cabeça grande / que a custo é que se equilibra, / no mesmo ventre crescido / sobre as mesmas pernas finas, / e iguais também porque o sangue / que usamos tem pouca tinta.   
 
E se somos Severinos / iguais em tudo na vida, / morremos de morte igual, / mesma morte severina: / que é a morte de que se morre / de velhice antes dos trinta, / de emboscada antes dos vinte, / de fome um pouco por dia / (de fraqueza e de doença / é que a morte severina / ataca em qualquer idade / e até gente não nascida).
 
Essa cova em que estás, / com palmos medida, / é a cota menor / que tiraste em vida. / É de bom tamanho, / nem largo nem fundo, / é a parte que te cabe / deste latifúndio. / Não é cova grande, / é cova medida, / é a terra que querias / ver dividida. / É uma cova grande / para teu pouco defunto, / mas estarás mais ancho / que estavas no mundo. / É uma cova grande para teu defunto parco, / porém mais que no mundo / te sentirás largo. / É uma cova grande para tua carne pouca, / mas a terra dada / não se abre a boca.
 
Coisa de gênio!