Mulheres, Violência e a Legislação Brasileira

Del Priore (2013, p. 6) ensina que “não importa a forma como as culturas se organizaram”, a diferença entre masculino e feminino sempre foi hierarquizada. Analisando esse contexto no ordenamento jurídico brasileiro, veremos que de longa data esse entendimento vige. No Brasil Colônia, o patriarcalismo brasileiro conferia aos homens uma posição hierárquica superior às mulheres, de domínio e poder, sob o qual os “castigos” e até o assassinato de mulheres, pelos seus maridos, eram autorizados pela legislação. A legislação portuguesa trazida para o Brasil era constituída pelas Ordenações Filipinas, composta por leis compiladas em livros por ordem de D. Felipe I, e que vigorou no país até a publicação do antigo Código Civil, em 1916. Pelas Ordenações, a mulher era tida por incapaz para praticar atos da vida civil devido à sua fraqueza de entendimento. Se fosse casada, a incapacidade era suprida pelo marido, seu representante legal. Do ponto de vista criminal, as Ordenações Filipinas traziam expresso tipo penal para os homens que matassem suas mulheres quando encontradas em adultério sendo desnecessária prova austera; bastava que houvesse rumores públicos. Ainda, havia isenção de pena para aqueles que ferissem as mulheres com pau ou pedra, bem como aqueles que castigassem moderadamente suas companheiras (Livro V, Título 36, § 1º).

Após quase 350 anos de vigência, o Código Criminal de 1830 afasta parte dessas normas, entre as quais, aquelas que autorizam os castigos e a morte de mulheres, por adultério, seguindo tendência de substituição da vingança privada pela mediação do Estado (Correia, 1981). Contudo, o Código Criminal de 1830, apesar de ser promulgado sob vigência da Constituição Brasileira de 1824, que instituiu igualdade formal “para todos”, refletiu os costumes da sociedade patriarcal e machista da época, tratando desigualmente homens e mulheres quando tipificou o então crime de adultério: se cometido pela mulher casada, seria crime em qualquer circunstância. No entanto, para o homem casado, apenas constituiria crime se o relacionamento adulterino fosse estável e público.  Cabe ressaltar, entretanto, que sob a vigência do Código Penal de 1890 e, posteriormente, do Código Penal de 1940, duas figuras jurídicas foram criadas pela defesa dos uxoricidas (noivos, namorados, maridos e amantes acusados de matar suas companheiras). Trata-se dos “crimes de paixão” ou crimes passionais e da legítima defesa da honra, que ganharam força e foram largamente popularizados.

O Código Penal de 1890, previu, no campo da responsabilidade criminal, que não serão tidos por criminosos aqueles que estivessem em estado de completa privação de sentido e de inteligência no ato de cometer o crime. Os defensores dos uxoricidas se valeram dessa previsão para defender que os assassinos das mulheres estavam em completa privação de sentido no ato do crime (Correia, 1981).

Durante um longo período, a tese de legítima defesa da honra era acolhida pela justiça para absolver acusados de matar as mulheres. Apenas no ano de 1991, essa figura jurídica foi definitivamente afastada por decisão do Superior Tribunal de Justiça, sob o argumento de que a “honra” é atributo pessoal e, no caso, a honra ferida é a da mulher, quem cometeu a conduta tida por reprovável (traição), e não a do marido ou companheiro que poderia ter recorrido à esfera civil da separação ou divórcio (Recurso Especial 1.517, 11.03.1991). O Código Penal de 1940, atualmente vigente, estabelece como circunstância agravante o agente ter cometido o crime prevalecendo-se das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, mas até poucos anos atrás, ignorava-se aplicação aos casos de violência contra as mulheres. Hoje, o Código ainda abriga essa circunstância agravante acrescida da norma específica, da Lei Maria da Penha (nº 11.340, de 2006), quando o crime for cometido contra as mulheres nas relações doméstico-familiares e afetivas. Destaque, ainda, a recente (e importante) alteração ao Código pela Lei do Feminicídio (nº 13.104, de 2015).

Assim, no que tange à violência perpetrada contra mulheres, a legislação brasileira atual se mostra como uma das mais avançadas em termos de direitos e de cidadania. Entretanto, apresenta uma realidade desigual e injusta, produzindo comumente um sentimento de descrédito em relação às conquistas legais. Denota-se de suma importância que essas alterações no âmbito material (penal) sejam acompanhadas de mudanças no campo processual, capazes de assegurar o acesso das mulheres vítimas de violência a meios de proteção jurídicos, além de fazer frente também à possibilidade de perda e restrição de direitos conquistados.a