Constitucional, mas incoerente

É característico em ano eleitoral que diversos ensaios saltem das gavetas mofadas de autores diversos, escritores e pensadores, tratando da importância do pleito eleitoral. É, sem dúvida, um tema de interesse coletivo e que, a meu ver, não perde campo com o tempo. Muito pelo contrário, deve ser discutido, pensado e repensado sistematicamente. E aí que vai a crítica; não somente em ano de pleito. E acredito que mais do que a abordagem das preferências e rumos partidários, da importância do exercício de cidadania, devemos parar para analisar a contemporaneidade do rito eleitoral. E é justamente nesse ponto crítico que baseio esse ensaio.

Em ano eleitoral, exercemos enquanto povo nossa titularidade de direito no tocante ao poder constituinte ao elegermos representantes legais que atuarão como massa encefálica e matéria-prima pensante do poder legislativo. Quanto a isso, torna-se mais interessante quando pensamos sob a óptica da competência. Elegemos e ainda estamos a eleger representantes que serão responsáveis, mais do que pelo rumo social e econômico que o Brasil vai tomar nos próximos anos, pela criação e recriação do ordenamento jurídico que nos permite viver em sociedade.

Nesse sentido é que vem a dúvida quanto à incongruência do que fazemos. Como sociedade, e para a manutenção da sociedade, necessitamos de um norte que balize as ações das pessoas enquanto cidadãos e quando no desvio de conduta, da menos grave à mais perniciosa, procuramos por aqueles que de formação têm competência para aplicação das leis que regem as relações entre os homens. E ressalto a importância do conhecimento da ciência em questão, para a aplicação justa e em benefício dos bons costumes.

Entretanto, vale lembrar que os responsáveis pela elaboração dessas normas que regem tais condutas precisam necessária e, basicamente, serem letrados. Isso mesmo, aqueles que elaboram e que definem o que é lícito e o que é ilícito precisam não mais que a mera e básica alfabetização. Insistimos em justificar que a democracia se faz nesse sentido, com acesso a todos. Ledo engano. É importante pensarmos na falta de sentido que há quando estabelecemos que seja justo que quem cria seja leigo e que quem aplica entendido. É sabidamente uma prerrogativa garantida na Constituição Federal segundo Art. 14, §4. Entretanto, devemos repensar na contemporaneidade da sua aplicação.

Falta mutabilidade na interpretação da norma. Daí nos vemos, por conta dessa interpretação, em meio à dúvida se o candidato a deputado federal pelo estado de São Paulo é ou não alfabetizado, tendo como justificativa da sua legibilidade a entrega, no prazo ainda de dias, de uma carta escrita a punho solicitando sua candidatura. É realmente essa qualificação que precisamos? Acaso nos satisfazemos quando em uma clínica médica somos atendidos por uma secretária em vez do clínico?

Ou numa oficina de automóveis nos contentamos com os serviços do clínico ao invés do mecânico? Ou quando vemos um mecânico à frente de um projeto de construção civil? Obviamente que não tenho por intuito defender a legibilidade restrita de candidatos com ensino fundamental, médio ou superior, tampouco desqualificar em poucas linhas o processo de seleção representativa, principalmente do congresso.

Entretanto, a provocação que se deixa é outra. A divisão social do trabalho, idealizada por Marx há séculos, é atual hoje quando estratificamos a sociedade para que possamos viver em harmonia, cada qual exercendo aquilo que de melhor sabe fazer. Tal similitude de pensamento e prática não se deveria aplicar também àqueles que labutam à frente da estruturação do ordenamento jurídico, que constitui a coluna vertebral da relação jurídico-política do povo com o estado?