“Ofereço um fim digno”

João Martins Filho, de 58 anos, exerce um trabalho imprescindível. Natural de Lauro Müller, mora em Tubarão há 25 anos. É auxiliar médico legista, função que desempenha há mais de 22 anos na Cidade Azul. João revela que se orgulha, além do trabalho que realiza com muita dedicação e seriedade, de sua esposa Maria Ana Pignatel Marcon Martins e da filha Anneta Marcon Martins, estudante de medicina, que seguirá a carreira por influência do pai na área da saúde. Acostumado com os trâmites do IML, ele confessa que seu único medo é ter um dia que presenciar a partida de pessoas de sua família, a despedida. 

Silvana Lucas
Tubarão

Notisul – Qual a diferença entre IML e IGP?
João Martins Filho –
Instituto Médico Legal (IML) é um órgão do Instituto Geral de Perícias (IGP), que abrange os Institutos de Identificação, de Criminalística, de Análises Laboratoriais. Estes quatro compõem o IGP, órgão maior localizado ao lado da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), destinado a perícias criminais. Atualmente, o governo executa reformas em um prédio no bairro Humaitá, no qual o executivo estadual informou que todos os órgãos do IGP vão ficar no mesmo local. As obras estão previstas para finalizar em outubro. Não sei se este prazo será cumprido, mesmo assim espero que logo tenhamos um espaço melhor para trabalhar. 

Notisul – Em que tipos de morte, as pessoas são encaminhadas para o IML?
João –
Todas as mortes violentas. Como afogamentos, enforcamentos, acidentes, estupros, homicídios, até quando ocorre uma briga em que um dos envolvidos acerta o outro com um soco fatal ou quando um sujeito cai em plena rua, bate com a cabeça, enfim uma série de mortes com estas características. Os encaminhamentos realizados pelo hospital, na verdade, não deveriam ser levados para o IML. Este trabalho, já solicitamos à prefeitura, que recebe investimentos para implantá-lo. Precisamos em nossa região disponibilizar o setor de Serviço de Verificação de Óbito (SVO), já oferecido em Criciúma. Este departamento deveria ser criado para estes casos clínicos que, atualmente, a direção da unidade hospitalar nos envia através da realização de boletins de ocorrências. Precisamos urgente em Tubarão do SVO porque atendemos muitos casos e trabalhamos com um número reduzido de funcionários.

Notisul – Quais as dificuldades desta profissão? Mexer com os mortos ou enfrentar os vivos?
João –
As maiores dificuldades, com certeza, são os vivos. Com os mortos, lidamos tranquilamente, sem qualquer problema. Pessoalmente não consigo separar os dois lados, o profissional do emocional. Assim que me aproximo de uma pessoa falecida, trabalho com todo respeito. Tento transportá-la da melhor forma possível, mesmo que esta tarefa, muitas vezes, não seja fácil pelo peso carregado. Quanto aos vivos, a dificuldade está em presenciar a dor de uma família, que muitas vezes nos procura emocionada e impaciente pelo resultado dos laudos, mas nunca me envolvi em atritos. Todos os profissionais que trabalham neste setor lamentam pela dor dos outros. Desde pequena, minha filha já sabia quando eu atendia um corpo de uma criança. Era difícil não chegar em casa emocionado.

Notisul – Qual é a sua função no IML?
João –
Anteriormente, quando este setor pertencia à Polícia Civil, eu era técnico em necropsia. Com a mudança há dez anos, passamos a ser do IGP, como auxiliar médico legista, somos em três nesta função. Na verdade, somos motoristas, faxineiros e assistentes do médico. Tarefas que desempenhamos sem receber financeiramente como um legista. Pegamos o cadáver, colocamos sozinho na mesa, tiramos as digitais, batemos fotos, lavamos o corpo, trocamos de roupa, enfim, realizamos uma série de serviços dentro desta profissão. Com o acompanhamento do médico, abrimos e fechamos o corpo. Trabalham na unidade da Cidade Azul três médicos, Carlos Otávio Gonçalves, Paulo Cruz Junior e Ângelo Ferreira. Às vezes, também o doutor Fernando da Fonseca, que é médico legista em Laguna, porque nos fins de semana os atendimentos deste município são realizados em Tubarão. Nossa abrangência, no sábado e domingo, é de Sangão até Paulo Lopes. Durante a semana é entre Sangão e a Igreja da Estiva, em Capivari de Baixo. Nossa função é auxiliar o médico, abrir o corpo, conforme as lesões e realizar os encaminhamentos indicados pelo legista. Não fizemos nada sem a chegada do médico no setor.

Notisul – Dentro das atribuições de um auxiliar legista, quais os piores momentos? Receber o corpo, reconhecer ou analisá-lo?
João –
Particularmente não gosto de deixar nenhum familiar esperando para realizar um sepultamento, nesta hora tão difícil.  Sempre que meu telefone toca, seja a hora que for, saio em disparada. Em muitas ocasiões, já cheguei ao local antes dos bombeiros e da polícia, mas precisei aguardar outros profissionais para não mexer nas evidências. Minha preocupação é manter o respeito com a família e a pessoa falecida, seja lá qual for o motivo da morte.

Notisul – Como escolheu esta profissão?
João –
Prestei concurso inicialmente para a Polícia Militar e não consegui passar. Na época, trabalhava no hospital em Urussanga e meses depois ocorreu um concurso pelo IML. Fiz e passei. Neste período, estudava enfermagem na Unisul. Comecei nesta profissão no dia 10 de maio de 1993, na academia da Polícia Civil, e assumi em Tubarão no dia 27 de setembro do mesmo ano.

Notisul – Para cada corpo recebido no IML é realizado um laudo pericial. Para onde é encaminhado este documento?
João –
O laudo é encaminhado para a delegacia onde foi feito o boletim de ocorrência. Um exemplo: houve um acidente na BR-101, próximo de Jaguaruna. O laudo é enviado para este município, onde será realizado o inquérito policial. É elaborado praticamente no tempo em que o corpo permanece no setor, exceto alguns casos onde é necessária uma necropsia mais detalhada. Quando o tipo de morte é mais simples, como um enforcamento, este documento é quase imediato. 

Notisul – O que você considera ser o melhor de sua profissão?
João – Não troco meu trabalho por nenhum outro. Não somos remunerados como merecíamos, mas não mudaria minha profissão. Gosto do que faço. Não adianta querer trabalhar nesta área somente pelo salário ou por ser um serviço público. Não finalizo meu trabalho com a entrega de um caixão lacrado, isto ocorre somente se não houver mais nenhuma forma de identificação. Senão, tento de todas as formas para não deixar os familiares sem a certeza de uma despedida. Tento suturar tudo o que posso em um cadáver. Atuo com tapamentos em alguns pontos com silicone, técnica moderna para que não haja vazamentos. Também faço maquiagem e deixo, sempre que possível, o morto apresentável. A visualização de uma pessoa morta oferece a um pai, mãe, marido, esposa ou filho uma última oportunidade de despedida. Estou nesta profissão há 22 anos e até o fim do meu trabalho vou realizá-lo da melhor forma. 

Notisul – Quais os crimes que mais lhe chocaram em sua trajetória profissional?
João –
Os contra crianças. Não esqueço de duas meninas que morreram em nossa região, uma até recentemente. Lembranças que se eu for contar dariam um livro, com inúmeras passagens. A morte de um inocente é o que mais sensibiliza. Não gostaria de destacar nenhuma para que os familiares não sofressem mais uma vez com esta tragédia.

Notisul – Você já foi obrigado a trabalhar com corpos enterrados?
João –
Várias vezes. Recentemente, recebemos o pedido de exumação de um cadáver enterrado na região, que deverá ser encaminhado para o estado da Bahia. O pedido vem pelo juiz que pede a exumação para a identificação, trabalho que nestas situações depende do tempo em que a pessoa foi enterrada. Conforme este período é a situação que vamos enfrentar para retirar o corpo de local e trazer para análise. 

Notisul – Que tipo de equipamentos o IML de Tubarão possui?
João –
Não há equipamentos para a realização de exames em nossa região. Fizemos coleta de vísceras, que são órgãos como estômago, intestinos, bexiga e encaminhamos para Florianópolis. Ultimamente, as análises patológicas que eram realizadas na capital são enviadas de lá para Joinville. Estes tipos de exames são para identificação de medicamentos e envenenamentos, substâncias ingeridas e outras situações que requerem análises mais profundas.

João por João
Deus –
Onipotente
Família – Tudo
Trabalho – Honra
Passado – Passou
Presente – Agora
Futuro – Realizações

"Não tenho medo da morte, tão pouco brinco com esta situação. Tenho, nesta passagem, respeito pelas pessoas que já não respondem pelos seus atos"