terça-feira, 16 julho , 2024
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Léo Rosa de Andrade

Casamento real, imaginação de plebeu

Plebe: “a classe social mais baixa de um povo”. Plebeu: “de qualidade ordinária; destituído de distinção; reles” (Houaiss). Estúpido: ignorante; carente de inteligência, de discernimento. Contente: empolgado por sentimento de alegria.

Alguns espertos se souberam nomear nobres (que se distinguem por títulos, fidalguia, elevação). Os nobres inventaram um deus para plebeus estúpidos obedecer e se contentar; os nobres se proferiram eleitos para governar a terra.

Plebeu e nobre não são apenas vocábulos antônimos. Isso diz pouco. As condições de um e de outro no mundo são opositivas. Plebeu é vassalo do suserano; é-lhe devoto, rende-lhe preito e tributo. Plebeu se plebeiza.

Essas coisas deveriam estar, de fato e de gosto, nas prateleiras esquecidas da História. Nós brasileiros, sobretudo, deveríamos ver isso com a distância do tempo e com o orgulho de patriotas que se fizeram uma República.

Sim, somos uma República aos solavancos. Mas somos cidadãos com declaração constitucional de igualdade. Não reconhecemos distinção por nascimento. Creio que as pessoas não subjetivaram seu status político atual.

Talvez pela nossa exacerbada diferença de condição social (de custo de oportunidade: desigualdade de chance diante da vida), restemos equivocados e pensemos que a vida é mesmo assim: de algum modo restamos plebeus e nobres.

Questão de mentalidade. Por alguma (des)razão, estupidificadas multidões sobram em estúpido contentamento diante das notícias de que um príncipe casou-se com uma plebeia, especialmente com uma plebeia “mestiça”.

Uma comoção simplória (e racista) vê magnanimidade na “concessão” principesca. Como podem perdurar tais pensamentos? Pois perduram. Há anos, injuriado, escrevi “Cabeça de plebeu”, atinente ao casamento de Kate e Willian.

Dizia, consternado – o mesmo desconforto moral que me alcança hoje – que devia ser agradável pensar como plebeu: “o povo vulgar, a ninguenzada contente, ainda que cheia de motivos mais para sofrer do que para se contentar”.

Disse e mantenho: é singela a lógica plebeia: basta ser tolo, acreditar e se felicitar com tolices. E mantenho convicto: “O mundo não é justo. A culpa é dos plebeus. Os plebeus sustentam as coisas como foram e como são”.

Pois, senão: sem nenhuma importância para nossas vidas, casaram-se Meghan e Harry. Nossos contentes, assim como os contentes do mundo (bilhões), exultaram em fascinação. A “Casa de Windsor” capitalizou a empolgação.

Edito Nizan Guanaes: “Como pode algo acusado de velho e anacrônico, carregado de privilégios indefensáveis, mudar de imagem sem mudar de essência? Foi o que fez um grupo de protagonistas muito bem remunerados.

A família real usou o holofote global para levar ao mundo a mensagem fundamental de união e respeito às diferenças. Numa cerimônia com pompa e circunstância tivemos uma grande lição de como divulgar um reino e uma realeza.

O toque final foi majestoso: todos de pé entoando ‘God Save the Queen’. Depois, o radiante casal desfilou numa carruagem aberta, como nos contos de fada, sob os gritos histéricos dos súditos. Tivemos bilhões de tuítes e posts.

A cerimônia varreu as redes como um tsunami. O mundo não resolveu seus problemas de desigualdade depois do casamento. Mas ganhou mais um tijolo para construir a ponte entre as diferenças” (FSP, 22mai18).

Discordo da “ponte entre as diferenças”. Vejo empreitada publicitária. “Estamos testemunhando a vitória de uma inequívoca e persistente campanha de relações públicas e branding” (Bárbara Gancia, Estadão, 20mai18).

A comoção plebeia não faz conta, fica deslumbrada. Servidão voluntária (La Boétie). Sujeição oferecida. Uma indignidade. Uma miserável imaginação de plebeu que se felicita no arremedo. Então, imitação manifesta:

“Casamento real inspira tendências para cerimônias no Brasil. [Será] fácil encontrar nos comércios populares itens inspirados no casamento. Tudo o que a nova duquesa de Sussex usa se esgota nas lojas” (Dani Braga, FSP, 21mai18).

Pedofilia, religiosos, escândalos por fuga de controle

Por razões, ou por falta de razões, a maior parte da humanidade decidiu levar para fora dos olhares gerais as suas práticas sexuais. Sexo, mesmo o consentido, não obstante sabidamente feito, é feito em condições sigiladas.

Imagina sexo proibido, o do tipo transgressivo dos bons costumes, ou, muito mais, o de espécie criminosa, como a pedofilia. A pedofilia é a prática sexual mais interditada, seja pelos costumes, seja pelas leis, seja pela repressão policial. No Brasil, não existe o tipo penal pedofilia. Pedofilia, aliás, é o nome do transtorno psicopatológico que leva o adulto a sentir atração sexual por criança. O pedófilo é punido se externar sua vontade, consubstanciando-a em ato. Seja, não é com esse nome que sexo com criança é tipificado no Código Penal. O Estatuto Repressor traz em seu Capítulo II os Crimes Sexuais Contra Vulneráveis, e, mais especificamente, Estupro de Vulnerável.

Artigo 217-A do Código Penal: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos”. Pena – Reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos”. Trata-se de estupro presumido, independe da vontade da criança. Ainda, amoldando-se a pedófilos, há os artigos 240 e seguintes do ECA, que apenam crimes que envolvem crianças, sobretudo em suas imagens. Aí estão elencados os crimes que, em sua maioria, são praticados por meio de internet. A questão moral não é o vício de vontade da criança, só, mas a ciência por parte do adulto da vulnerabilidade da criança, que tem sua vontade (ou falta dela) facilmente manipulada, e a exploração indevida dessa ciência. Crianças são educadas (educadas?) a obedecer pais, parentes adultos, professores, religiosos e “mais velhos”. Bem, pais, parentes, professores e religiosos são exatamente a “fonte primária” de pedófilos, ou estupradores. Tudo isso se agrava em ambientes institucionais hierárquicos: famílias, redutos esportivos, seminários, internatos, quartéis, educandários. Sistemas ideológicos de ordem e obediência facilitam a manipulação de vontades. Igrejas: “Pedofilia provoca renúncia de todos os bispos do Chile. Religiosos puseram cargos à disposição do papa após a divulgação de estudo que revelou graves negligências em coibir abusos sexuais” (Estadão, 19mai18). A notícia parece auspiciosa para os crentes afiliados à igreja católica, no sentido de o Vaticano estaria tomando providências para curar-se dessa grave chaga que atinge danosamente crianças chilenas e de tantos outros países.

Mas, quem acompanha o desdobramento do assunto sabe, o Vaticano, e mais especificamente o papa dos católicos, está tomando providências porque o controle do silêncio das vítimas foi perdido e a justiça civil está atuando. Segundo o jornalista jesuíta Thomas Reese, em artigo publicado no National Catholic Reporter, a igreja “não possui um processo legal para julgar os bispos que seja transparente e que tenha legitimidade com o público”. Reese afirma que o papa deu apoio incondicional ao bispo Juan Barros, nomeado por ele mesmo, apesar das acusações de que este testemunhou e acobertou abusos cometidos por um padre que o próprio Vaticano condenara.

Francisco defende Barros, “chegando ao ponto de acusar os seus detratores de calúnia e de serem agitadores esquerdistas” (https://bit.ly/2ITNQHl). O papa alega falta de provas, como se pedofilia deixasse rastros fáceis. Ademais, quando o papa foi ao Chile. “Um grupo de vítimas insistiu em se reunir com o pontífice para entregar-lhe provas dos abusos, mas o papa se recusou a recebê-los por acreditar na inocência dos religiosos”. O escândalo ganhou projeção. O Vaticano enviou alguém de confiança ao país, para colher os acontecimentos. Citando o informe de seu enviado, o papa Francisco atribui o caso a disseminação do delito de abuso de menores.
Isso, segundo a interpretação do pontífice, estaria por trás do fato de o Chile vir se transformando, nos últimos tempos, no país mais laico da região, depois do Uruguai, e estaria causando o afastamento de fiéis da Igreja Católica. Esse distanciamento dos fiéis ficou evidente durante a visita de Francisco, quando houve episódios violentos, como a queima de igrejas” (Sylvia Colombo, FSP, 19mai18). Leia-se: pedofilia, queima de igrejas, papa preserva ovelhas. A matéria cita Fernando Ramos, bispo chileno espantado com a quantidade de delitos apontados: “Foi usado de modo inaceitável o poder dos religiosos, que abusaram sexualmente de pessoas que estavam sob nossa proteção”.

Os religiosos chilenos perderam o controle. Não o de si mesmos, pois sabiam o que faziam. Eles perderam o controle dos fiéis. Caro devoto brasileiro: a igreja, o papa, as crianças, os pedófilos… O Chile não poderia se chamar Brasil?

Ousadias de outras vivências amorosas, o Judiciário

Vida disciplinada. As gentes carecem de disciplinamento. Mesmo na vida afetiva, as pessoas pedem amarração a modelos. Os que cumprem os atrelamentos formulados da vida social os desejam para si e os exigem para os outros.

Cada disciplinado por fórmulas de convivência é arauto e meganha da formulação que o alcançou e à qual se entregou. Disciplinados não suportam vidas em diferença. O conservador dos costumes considera-se uma reserva moral.

Fórmulas são acachapantes. Modelos que alicerçam costumes bussolam condutas, fornecem certezas. Fora da sociedade disciplinada, prevista, está a sociedade de risco, os comportamentos de incertezas; aqui se move a vida.

A convivência monogâmica não é fórmula universal, mas tem comprida raiz na Tradição Ocidental; tem status de ordenação chancelada pelo Estado. Há rituais legais exigíveis aos pares amorosos que desejam conviver “na lei”.

Contudo, “Poliamor: CNJ discute reconhecimento de união estável com mais de duas pessoas. O Conselho Nacional de Justiça decidirá se cartórios podem registrar como união estável relações que envolvam mais de duas pessoas.

Com esse julgamento, o CNJ irá orientar todos os tabelionatos do país sobre como se portar diante do chamado poliamor, ou seja, de pedidos para reconhecimento de famílias que sejam compostas por três ou mais partes.

O conselheiro João Otávio de Noronha, que é relator da matéria e corregedor-geral de Justiça, votou a favor do pedido de providência para que o conselho proíba cartórios de concederem escrituras a uniões poliafetivas.

Alegou que ‘o conceito constitucional de família, o conceito histórico e sociológico, sempre se deu com base na monogamia’. Para ele, ‘ninguém é obrigado a conviver com tolerância de atos cuja reprovação social é intensa’.

Luciano Frota informou que divergirá do relator. Representando o Ministério Público, Aurélio Virgílio, subprocurador-geral da República, defendeu que não há nenhuma nulidade no ato do tabelião que reconhece esse tipo de relação.
Virgílio criticou a demagogia com que é tratado o tema: ‘O poliamor não é novo na história’. Argumenta que a discussão diz respeito à esfera privada da vida das pessoas e, portanto, não cabe ao Estado interferir nesta decisão.

Noronha rebate: ‘Vamos destruir todo o milenar conceito de família em um sistema onde impera o cristianismo?’ Virgílio treplica: Não cabe interpretação restritiva das leis sobre o tema. ‘O caso não viola a Constituição nem o código Civil’.

Pela ADFAS, a advogada Regina Beatriz Tavares ‘não quer proibir a existência das comunidades poliamoristas, mas que tabeliães de notas lavrem escritura com a marca da ilegalidade’ (MatheusTeixeira, https://bit.ly/2KdhTb9, editado).

Enquanto a discussão corre no CNJ, o Diário Catarinense já noticiara (Rafael Martini, 13nov17, editado) “Decisão do TJSC reconhece relacionamento aberto como união estável. A 1ª Câmara Civil, em recurso sob a relatoria do desembargador Jorge Luis Costga Beber, garante o livre ajuste da vida amorosa.

No 1º grau, o pleito foi negado por se tratar de uma relação do tipo aberta, com contatos sexuais consentidos, tanto de um como do outro companheiro, com terceiras pessoas, não obstante a relação tenha perdurado mais de 10 anos.

Mas, para Beber, ‘não compete ao Estado impor modelos familiares preconcebidos, tampouco se imiscuir num modelo de relacionamento afetivo, consensualmente escolhido pelos interessados, despido de preconceitos, onde a fidelidade e a exclusividade foram tratadas de modos diversos’.

‘O conservadorismo do julgador, em sua formação consolidada sob os influxos dos conceitos tradicionais da família monogâmica por excelência, e seus preconceitos com novas formas de relações baseadas no afeto, na união de propósitos, não devem impregnar a decisão judicial que envolva um modelo não ortodoxo’” (Rafael Martini, DC, 13nov17, editado).

Eis o reconhecimento, pelo Judiciário, da ousadia de cultivar outras formas amorosas. São posturas revolucionárias que sacolejam os costumes. Gritos de independência da tradição têm acontecido nas urdiduras sociais e batido às portas do Estado, pedindo os efeitos apaziguadores da chancela oficial.

De quando em vez mentalidades lúcidas e com poder decisório dão o devido cuidado à atualização das liberdades de viver. Os conselheiros do CNJ e os desembargadores da 1ª turma do TJSC ajudam a desamarrar os desejos que habitam o mundo de uma moral já falecida, mas que alguns não querem deixar que se vá.

O Mecanismo, a esquerda autoritária, os seus ladrões

H á quem se coloque (ou esteja colocado) na vida como em guerra de posição (ainda que pouco saiba sobre hegemonia cultural). Falo sobre fazer torcida por um grupo de poder como o faz um sectário, não como o faria um intelectual.

Nos estados atuais, as estruturas da sociedade civil têm vida própria e não se curvam facilmente aos discursos que não legitimam propostas de organização social, mas intentam interditar narrações que alcançam circulação.

A esquerda brasileira (que, em sua realização concreta, é autoritária, religiosa e ladravaz, portanto de “práxis” direitista), brandindo uma palavra de ordem, fascista, fascistamente quer calar a boca de quem se lhe discrepe.

Tal pretensão satisfaz certos grupos de si para si mesmos, mas não obterá sucesso em elidir fatos. A operação Lava Jato é um evento social materialmente verificável. Esse processo já devolveu bilhões aos cofres públicos.

“MPF recupera R$ 11,9 bilhões com acordos. O montante calculado pela força-tarefa a ser ressarcido aos cofres públicos é de R$ 44,4 bilhões” (Fernanda Odília encurtador.com.br/kuCHJ). Bastam, pois, olhos de querer ver.

O objeto do processo é um esquema de ladroagem que foi montado sob predomínio da esquerda brasileira. O esquema, sob o nome de O Mecanismo, tornou-se série policial da Netflix, criada por José Padilha e Elena Soárez.

A indústria cultural converteu em entretenimento algo caro à esquerda patrimonialista. Aliás, a indústria cultural, no Brasil, é um esquema, em grande parte, atrelado a arranjo de favores públicos (farto financiamento de estatais).

As críticas de esquerda ao O Mecanismo são censoras. Consideraram a série policial como sendo política e dirigida contra seus líderes Lula e Dilma (a esquerda brasileira pratica culto à personalidade), abominando-a.

Na série, um policial de métodos “puros” insurge-se contra as formas institucionais de fazer justiça e converte-se em justiceiro, perseguindo um personagem que, ademais, teria tido um caso juvenil com sua esposa.

O vingador vai às últimas consequências pessoais ao tempo mesmo em que alimenta secretamente de informações a Polícia Federal, propiciando a derrubada de um mecanismo que toma todo o mundo político.

Está claro que a série é sobre a Lava-Jato, e a esquerda brasileira não tem como não se ver nela, pois a narrativa da ficção é baseada na realidade de um sistema de rapinagem montado sob os governos de Lula e Dilma.

Mas a ficção não se resume a isso. É uma coisa de mocinho e bandido: a Polícia Federal (uma delegada e poucos policiais) versus o mundo político. Sem concessões a quem quer que seja, alcança Lula, Dilma, Temer, Aécio.

A série simplifica as relações de poder corruptas que movem o Brasil. Claro, faz cinema, acelera as coisas para tornar-se atrativa. Mas, se há dramatizações, não há invenções. São fatos conformados a drama cinematográfico.

José Padilha tem história à esquerda, com o seu cinema fez denúncias importantes, com risco, inclusive, da própria vida. A irracional tentativa petista de linchá-lo é um desesperado exercício de controle autoritário.

A esquerda não se pode dar licenças de direita. A esquerda não pode atuar autoritariamente, formulando discursos censores. A esquerda tem que se obrigar à análise da história, antes de tudo, reconhecendo-a.

A esquerda que alcançou o poder traiu-se e traiu o povo que nela confiou. Uma série televisiva que explicita seus métodos e expõe seus atores deveria ser uma ferramenta de reflexão, não objeto de raivosa censura ideologizada.

No mundo democrático, sobretudo depois das mídias sociais, que para o bem e para o mal põem tudo em circulação, resolve pouco dizer que O Mecanismo cumpre papel enganoso. Basta assistir à série, ela falará por si mesma.

A esquerda tem que se esquerdear, franquear-se democrática, guerrear posições por persuasão. Tem que discursar seu credo e compromissar-se com ele. A esquerda não pode roubar e depois censurar a filmagem dos seus ladrões.

Estadão censurado, liberdade de imprensa, tradição autoritária

O Jornal Estado de São Paulo está sob censura judicial desde 2009. Naquele ano foi impedido de publicar matéria a respeito da operação Faktor, da PF, mais conhecida como Boi Barrica, que investigou Fernando Sarney.

Não obstante a importância que o periódico tem no cenário da imprensa nacional, o processo vem se desdobrando pelas instâncias do Judiciário. A censura prevalece. O mérito da questão aguarda julgamento no STF.

Há uma ONG, Repórteres Sem Fronteiras. A entidade acaba de publicar seu Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa. Trata-se da avaliação da livre circulação de informação em 180 países, efetuada desde 2002.

Conforme o relatório, “é cada vez maior o número de chefes de Estado eleitos que veem a imprensa ‘não como um fundamento da democracia, mas como um adversário contra o qual demonstram aversão’.

A conduta de Donald Trump, presidente dos EUA, agrava o cenário. Trata-se, afinal, do ‘país da primeira emenda’, menciona a organização, em referência à disposição da Constituição americana em favor da liberdade de imprensa.

O texto conclui que ‘a hostilidade em relação aos meios de comunicação não é mais privilégio de países autoritários, como a Turquia ou o Egito. Também houve agravamento na Europa.

Na América Latina, o diagnóstico da RSF anota ‘persistentes violências, impunidade e medidas autoritárias’. O melhor país da região é a Costa Rica (10º), o pior é Cuba (172º), ‘com monopólio quase absoluto sobre a informação’.

O Brasil está em 102º lugar. O texto destaca agressões de políticos e cita o ex-presidente Lula (PT) e o deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ) como incentivadores recorrentes de hostilidade contra a imprensa.

Também é avaliada a concentração da propriedade de meios de comunicação e as leis que regem o setor. ‘O Brasil está estagnado, não há nada de positivo. A 102ª posição não é digna de uma grande democracia’ (Colomblé).

Emmanuel Colomblé, diretor da RSF para a AL, considera que ‘faltam mecanismos de proteção e de investigação e comprometimento com a causa por parte de políticos e de órgãos oficiais, como o MP’.

A ONG também vê preocupação com o crescente uso de ações judiciais. De acordo com a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, há cerca de 3.000 processos solicitando retirada de conteúdo entre 2012 e 2017.

Em 15% dos casos, além de pedir a exclusão da publicação, os processos exigem que o autor se abstenha de publicar sobre o tema – uma espécie de censura prévia”. (Edito a FSP, 26abr18). O Estadão é vítima de situação tal qual esta.

Se O Estado de São Paulo, um dos jornais mais poderosos do País, está sob censura prévia judicial, eu também estou. É assim que me sinto, pelo menos: se há poder capaz de calar a imprensa, há poder capaz de me calar.

Com tristeza cívica, há anos acompanho o Estadão noticiando a censura a que é submetido. A demanda está no STF. É causa prioritária. Todos os jornais nacionais deveriam publicar o andamento do feito diariamente na capa.

Trata-se, antes de ser uma questão constitucional brasileira, de um requisito básico da tradição liberal, um tema listado como direito da Humanidade. A primeira liberdade – base necessária das demais – é a liberdade de opinião.

Nossa tradição autoritária não se distingue à esquerda ou à direita. Ressalto o afirmado pela Repórteres Sem Fronteira: Lula ataca a imprensa; Bolsonaro insulta a imprensa. Acrescento: Sarney obteve censurar a imprensa.

Nossos políticos não veem a liberdade de opinião como algo além do seu bem ou do seu mal particular. Lula e Bolsonaro, iguaizinhos, veem mancomunação contra si. Ambos elevam seus interesses acima da imprensa livre.

A construção democrática do mundo ainda carece de jornais. O jornalismo, na sua tarefa diária de trazer informação, “desenha um primeiro rascunho grosseiro da história” (Philip Graham, editor do Washington Post).

Nesse rascunho, seguramente, haverá opiniões das quais discordarei. Ainda bem. Eu lamentaria um mundo em que meu pensamento não fosse confrontado. Em tal mundo nem me seria concedido dizer meu pensar.

Gleici: A gente sempre esteve na invisibilidade

Fico enternecido. A notícia sobre a menina Gleici Damasceno alcança-me por meio de artigo de Eduardo Suplicy, o Dom Quixote do Brasil. Um Dom Quixote, quem sabe, que nem Cervantes imaginaria escrever.

Se Suplicy dedica-se a lavrar texto sobre o Big Brother Brasil, haverá de ser algo interessante de se ler. Dei-me o direito de reservar os devidos preconceitos para com o reality. No mais, tudo foi satisfação. Então, me aprofundei.

A menina do programa vulgar pensa. Sua vida não é vulgaridade. Filiada a partido político (PT), militante social, estuda psicologia, tem função pública (Secretaria de Juventude), preside Conselho Antirracismo, é palestrante.

Tem 23 anos, a mãe conta 39. Nasceu de uma adolescente. O pai foi assassinado quando ela tinha 21 anos. Deve ter marcado a dor da morte trágica, mas não fez falta financeira. Era a mãe que segurava as pontas da sobrevivência.

Baixada do Sobral, Rio Branco, Acre. Rua empoeirada, esburacada, enlameada. Pobreza, periferia. Casa desrebocada, cerca de sarrafo. Telha de fibrocimento, sem forro. Calor. No Norte, muito calor. Não tinha privacidade.

Dividia o quarto com o irmão, o guarda-roupas, com a família. Labuta: para a aula, caminhava 6 km, com fome. Quem conta estas coisas é Dona Vanúzia, a mãe. Mas deixa claro: “A gente não quer se vitimar de coitadinha, não”.

A mãe da menina e sua dignidade dizem que sempre foram assim: não eram de reclamar, de estar pedindo, fazendo-se de vítimas; sempre foram de trabalhar, de pagar as contas, de ir à luta (encurtador.com.br/jyDIN).

Os acreanos festejaram a vitória de Gleici Damasceno no BBB 18, a maior audiência em anos e recorde no Twitter. Uma menina que trabalha desde os 12 anos; a primeira entre 50 primos a chegar à universidade. Orgulho da família.

No programa, conforme li e ouvi, ela safou-se de situações difíceis, transmitiu confiança, expressou honestidade. Uma guerreira que escalou as durezas da vida sem concessões ao comodismo e sem tornar-se uma arrivista.

Ganhou respeito. Lido o Suplicy, fui em busca de mais. Tomei-me de admiração. Ela sabe de si: “A gente sempre teve invisibilidade, e de repente, vai a um programa”… e muda a programação de uma rede de TV importante.

Ativista social, fez filmes para plantar consciência, propunha a desapropriação de terrenos baldios para fazer praças de brincar. Fez coisas concretas para mudar o lugar onde ela morava (encurtador.com.br/bdqKW).

Não é demagoga, disse que vai mudar a própria vida se ganhar o prêmio, ao mesmo tempo afirmou que cuidaria do seu bairro e da sua cidade. Declarou que tem ideais para dizer ao mundo (encurtador.com.br/tuOSW).

Não me importa o partido. Isso é critério de cada um. Ela escolheu o PT. Importa-me que ela é política, filiada, militante. Está na peleia. Não se abstrai do mundo real para resolver a Sociedade nas comodidades da internet.

A fama do BBB levou-a a outros programas mais. A fama agora é dela. Nas tantas entrevistas, há sempre emoção. Não se deixou deslumbrar. Goza a felicidade. E não se descuidou de sair da “casa” dando recado político.

Um programa movido a bobagens tirou Gleici Damasceno da condição de invisível em que o Brasil a fez nascer, crescer, viver. Uma invisível, contudo, a considerar. Ela já se situou a ponto de a militante empolgar o momento.

Suponho que será candidata (que não se iniba em capitalizar a oportunidade), calculo que será eleita (o Acre sabe mais que eu), desejo que continue estudando (insolente, esta minha aspiração). O País carece de gente assim.

Essa boa sorte (ou desempenho) que lhe trouxe notoriedade e dinheiro pôs a menina na ribalta. Eis uma chance. De quando em vez o Brasil que não cuida de sua gente acaba tropeçando em gente que quer cuidar do Brasil.

Caros coxinhas, caros mortadelas: mancomunações

É muito interessante que vocês existam. Explico: a Ditadura de 1964 obteve bastante sucesso nos seus infestos propósitos. Já não falo de torturas, assassinatos, corrupção etc, coisas tão sabidas. Refiro os males políticos.

O mal mais bem acabado dos milicos foi o político. Ao extinguir os partidos que tinham raízes históricas, dizimou com situações ideológicas; ao perseguir, cassar, prender ou banir seus líderes, destruiu porta-vozes de ideias.

A consequência da supressão dos debates de posições foi a indiferença generalizada. Os que cresceram sob o silêncio imposto à nação não tiveram formação cívica, não tomaram, pois, opinião diante de alternativas possíveis.

A indiferença diante da política cresceu e converteu-se em asco. Com razão, talvez, o asco, porque o mundo político ficou horrível. Esse o “sucesso” dos ditadores: a política de baixo nível, o nojo pelo baixo nível da política.

Um vocábulo me vem em bom auxílio: disteleologia: “crença na falta de propósito ou finalidade do universo” [político]; logo, “ausência de contribuição para o resultado final de alguma coisa” [na esfera política] (Houaiss).

Doutro modo: “política, estou fora”. Os militares conseguiram produzir falta de sentido na política, então, nela, ou por meio dela, restamos sem ter o que dizer de útil com o escopo de obter um resultado de interesse público.

Caros coxinhas, caros mortadelas, vocês mudaram isso. Surgiu uma indignação que implica posição e militância. Há equívocos na militância, tão substanciada por insultos, mas há o retorno à política, o que é bom.

A substituição de argumentos por insultos odientos haverá de decorrer da nossa rala prática democrática. Com o tempo certamente substituiremos os discursos impositivos de certezas por esforços de persuasão.
Democracia não é mais “metade mais um”. Já não cabe na construção da vida em comum o discurso formulado pelo marqueteiro do PT João Santana: “Nós contra eles”. Democracia pede formação de consensos amplos.

Argumentos persuasivos, portanto, antes de tudo. E mais algumas coisas. Primeiro, não cabe uma “apriorística” “pureza” dos “nossos”, como se os “nossos” tivessem licença para práticas que condenamos nos “outros”.

Nesta fazenda Brasil, os políticos (falo dos corruptos identificados) são todos iguais, não cabendo dizer que os “nossos” são mais iguais (ou mais perseguidos) do que os dos “outros”. Edito Carolina Bahia, DC, 14abr18:

“Operação abafa está em curso em Brasília, tomando conta dos tribunais superiores. No STF, PT, MDB e PSDB unem esforços para tentar acabar com a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância”.

Desencantamento: lidas as siglas (e há outras), caro coxinha, caro mortadela, torna-se compreensível que interessa a uma mancomunação de partidos (inclusive o de vocês) que a coisa sofra abafamento geral.

Segundo, o argumento de recorrência “genérico”. Edito a FSP (13abr18): “Pressionado por suspeitas envolvendo amigos e família, Temer tenta reagir e fala em perseguição”. Lula arguiu o mesmo, Aécio disse igual.

Temer, Lula e Aécio não são vítimas de mancomunações, salvo as feitas entre eles mesmos. Coxinhas e mortadelas não se podem olvidar que os ministros (presos) de Temer foram os mesmos de Lula e Dilma.

Tanto a Justiça está isenta de partidarismo que o “STJ nega pedido de suspensão da condenação de Azeredo (PSDB) a 20 anos e 10 meses, imposta pelo TJ-MG. Mídia e Judiciário em mancomunação contra o PSDB?

Detalhe: o “agente” do crime, Marcos Valério, “trabalhou” para o PSDB e para o PT, do mesmo modo, fazendo a mesma coisa. A mídia o denunciou em ambos os “trabalhos”, a Justiça o condenou pelas duas “obras” criminosas.

Terceiro, a questão institucional, o desprezo pelas instituições. Sem elas, contudo, não há organização social. Mortadelas propõem casuisticamente nova constituição; coxinhas nem têm quem proponha alguma coisa.

Os mortadelas elegeram o culto à personalidade (e o populismo de Lula). Os coxinhas são faltos de personalidade que lhes represente; perigosamente flertam com os preconceitos que Bolsonaro professa.

Caros coxinhas, caros mortadelas, enfim, meus respeitos ao combate que vocês travam, à “bola dividida” que vocês peleiam. Mas, meus caros, vocês estão “fascistas”, tomados de certezas sobre vocês e os “outros”.

Coxinhas e mortadelas, vocês estão mancomunados em ódio, promovendo a fascistização do necessário diálogo público sobre o Brasil. Vocês estão certos no lutar, mas não o estão na maneira de fazê-lo.

Lula e a “resistência”: glorificação e derrota

Ninguém domina a borda de aleatoriedade que um gesto encerra. A opção de Lula por alongar a sua própria entrega à Polícia Federal foi uma atitude política bem medida, com repercussões tanto a seu favor quanto a seu desfavor.

A transmissão pública dos acontecimentos foi espetacular como gozo estendido para a sua plateia: o homem sacrificado; foi igualmente espetacular como gozo para os seus depreciadores: agonia longa para o ex-presidente a caminho do cárcere.

Lula conduziu a seu gosto – e para seu regozijo – uma “resistência” à ordem judicial de entregar-se à Polícia. Mas Lula, à sua revelia, propiciou exultação aos seus “inimigos”, que saborearam (um tanto doentiamente) o seu “calvário”.

Para os petistas, Lula ofereceu-se em holocausto pela “causa do povo”; para os antipetistas, Lula cometeu uma última ilegalidade ao descumprir a ordem do Poder Judiciário, que foi magnânimo ao aguardar por sua vontade impertinente.

Ninguém convencerá ninguém, pois já não se argumenta sobre o assunto, mas insulta-se. E nem se insultam ideias, mas pessoas: “fascistas” de ambos os lados detratam interlocutores, não pensamentos.

Há algo de bom nisso: os brasileiros, talvez tocados pela proposta de retórica irresponsável do Lula do “nós contra eles”, desde os rescaldos da Ditadura de 64, não tomavam posição. Agora tomaram: nós, a favor; eles, contra.

Posições vazias de conteúdo, todavia. Nos antilulistas encontro ódio de classe e falta de noção de História. Apesar de as jactâncias de Lula dividirem o Brasil em antes e depois dele, não se pode responsabilizá-lo pelo todo dos nossos males.

Com mentalidades de direita coxinha há pouco que conversar. “Esquecem” que Lula só é responsável pelas velhacarias da sua turma. “Deslembram” que nos 500 anos anteriores ao lulismo também se fez muito pouco pelo povo brasileiro.

Mas uma certa mentalidade de esquerda mortadela igualmente, na mesma medida, é falta de argumentos no suporte à sua moral seletiva. Há fatos incontestáveis a serem considerados, os quais são interesseiramente olvidados. Digo alguns:

A execrada Lava-Jato presidida pelo tão odiado quanto amado juiz Moro reembolsou o erário em bilhões de reais. É dinheiro ressarcido por quadrilhas. Quadrilhas que se formaram no governo Lula, composta por gente de sua confiança.

A investigações sobre os crimes petistas trazidas ao julgamento de Moro não eram conduzidas por ele. Aliás, a essas investigações Moro nem sequer tinha acesso. Foi a Polícia Federal chefiada por um petista que colheu material de provas.

Os processos que envolvem o ex-presidente alcançam, todos, as barras do STF e do STJ. Cerca de 90% dos membros desses Tribunais são nomeação de presidentes petistas. Eles seriam suspeitos para os petistas que os nomearam?

As estruturas de poder dos governos petistas fundaram-se sobre o pior das oligarquias corruptas brasileiras. As bases que compunham os governos Lula e Dilma são a mesma base que veio compor o governo Temer.

Temer, hoje xingado por sua trajetória, sempre foi sócio político de Lula no submundo político. E não só: Renan, que os petistas têm como o que há de pior, recentemente compartilhou palanque com Lula. Dialética do necessário?

O PT judicializou a política brasileira, levando suas derrotas no Congresso Nacional à apreciação dos juízes do STF. A pauta da Câmara dos Deputados, sobretudo, era “revista” no Supremo a cada insucesso dos petistas.

O petismo deu início ao “costume” de pedir impeachment. São dezenas, na esfera nacional e nos estados. Foram e são useiros do recurso. Quando Dilma sofreu o que tanto propuseram, nomearam o seu próprio “método” de “golpe”.

Os petistas estão vítimas dos vícios das nossas relações políticas. Tristes vícios que apreciaram, repetiram, ampliaram e sofisticaram. Roubalheira, sobretudo. Essas coisas que sempre tivemos não foram melhoradas nos governos do PT.

Sem essa de “mancomunação da mídia com o Judiciário”. Depoimentos de dirigentes petistas em processos legais confirmam o assalto. Vale lê-los e formar convicção própria sobre tudo isso. Ou ser torcida, massa de manobra, multidão.

Lula promoveu um espetáculo político com a sua “resistência”. Um ato de manter os seus. O petismo gostou. As relações de poder, contudo, têm sua própria lógica. Não sei se elas gostaram.

A cena foi glorificação, mas também foi derrota.

Investimentos brasileiros em crianças e cães

“O Grupo de Institutos Fundações e Empresas (Gife), uma das referências no Brasil em investimento social privado, lançou recentemente pesquisa sobre o tema. A pesquisa busca compreender quanto e como se investe no Brasil e quem são as empresas, fundações e institutos de origem empresarial, familiar independente e comunitária que investem recursos privados em ações de finalidade pública, contribuindo para o desenvolvimento da sociedade brasileira. O total investido em 2016 foi de R$ 2,9 bilhões” (Marisa Eboli, Estadão, 07jan18).

“O mercado pet teve um dos crescimentos mais consistentes durante a crise econômica. Entre 2014 e 2016, mesmo durante a recessão, o faturamento cresceu em média 7,7%. Só no ano passado o segmento movimentou cerca de R$ 23 bilhões em serviços, comércio de animais, e produtos veterinários, alimentação e acessório, segundo dados do Instituto Pet Brasil. A estimativa do setor é o faturamento cresça aproximadamente 7% em 2017. A demanda por serviços mais especializados – como hotéis, creches, babas e transporte – e profissionais aumentou (Túlio Kruse, Estadão, 24dez17).
 
São números. São expressão de contradições nossas. Não me parece que de dados tais quais estes seja possível advir perspectivas de convivência social alvissareira. Nossos cachorros, entretanto, vão muito bem. Talvez a nossa vocação seja mesmo a dedicação aos cães, o nosso mais perene e lucrativo segmento de mercado.

Nada contra a cachorrada. Os números, entretanto, nos revelam: segundo dados da Abinpet (Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação) divulgados no início do mês (nov16), o custo médio mensal com um cachorro varia de R$ 216,50 a R$ 411,21 (encurtador.com.br/jlIX7). Bem, “o valor mensal das parcelas oferecidas pelo benefício Bolsa Família Básico é de R$ 85. Para as crianças da família (entre 0 e 15 anos), há o benefício Bolsa Família Variável, que é de R$ 39,00 por criança ou adolescente” (encurtador.com.br/cgAZ8). Parece que é melhor ser bicho.

Temos 52 milhões de cães domésticos. Nossa população humana de 0 a 14 é de 44 milhões. “O Brasil registrou 17,8 milhões de crianças e adolescentes vivendo abaixo da linha da pobreza em 2016. O IBGE, responsável pelo estudo, diz que esse número representa 42% da população nessa faixa etária” (encurtador.com.br/lKMV1).

De fato, muito melhor, mesmo, no Brasil ser bicho de algum abonado dono ou de um dono atoleimado. Um dono desses cujos gastos de duvidosa utilidade para os pets nos coloca no topo do ranking mundial: “de acordo com a Abinpet, o Brasil ainda é um dos principais países do mercado pet mundial, ocupando o terceiro lugar no faturamento, atrás apenas dos Estados Unidos e do Reino Unido” (encurtador.com.br/elCDG).

Retomo as fundações privadas que fazem investimento social. O Brasil tem um número expressivo delas, segundo o IBGE, quando comparado com outros países: gasto total anual, repete-se, R$ 2,9 bilhões, com prioridade de 85,4% desses recursos para investimentos em educação. Para efeito de comparação, tome-se o MEC: “O orçamento previsto para novos investimentos no Ministério da Educação var ter redução de 32% em 2018 com relação ao ano anterior. Em 2017, foram destinados mais de 6,6 bilhões para investimentos no setor, enquanto a Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2018 reserva apenas R$ 4,52 bilhões” (encurtador.com.br/tBDW7).

Os brasileiros previmos, portanto, para o correr de 2018, investimentos na nossa educação privada assistencial e pública estatal algo em torno de R$ 7 bilhões. Os brasileiros, contudo, estranhamente, faremos “investimentos caninos” neste vigente ano de R$ 23 bilhões. Os brasileiros gostaríamos que o Brasil desse certo, mas destinamos via bolsa família a importância de R$ 39 mensais para o custeio de uma criança pobre; ao mesmo tempo, reservamos R$ 313,85 para as despesas com um cachorro. Os brasileiros teremos cães muito legais. Os brasileiros seguiremos cultivando violência neste país tão desigual.

Marielle, uma questão de Estado que estremece o País

Otema, por sua relevância para o Estado Democrático de Direito, há que permanecer escorado pela indignação pública. Não se pode deixá-lo ao esquecimento como tantas ocorrências significantes da nossa História foram deixadas.

A execução de Marielle Franco inscreve-se no vulgar cotidiano político brasileiro como um encruzo de civilização com barbárie. Sua militância na vida pública estabelecia uma diferença conceitual em nossos modos de fazer política.

Era uma parlamentar municipal que, concordando-se ou não com suas ideias, fazia diferença. O esclarecimento de seu assassinato é um imperativo cívico que ultrapassa a fronteira da investigação policial: é uma questão de Estado.

Na sociedade civil, é inadmissível que o cadáver, a história, as posições ideológicas e a vida pública dessa mulher sejam reduzidos a insultos entre reacionários inescrupulosos e românticos sem inocência, aproveitadores de ocasião.

Marielle não foi morta por manter relacionamentos sorrateiros com bandidos (uma calúnia) nem porque era mulher, negra ou pobre (uma simploriedade). “Até” a Veja (21mar18) sabe que ela é “a primeira vítima política da barbárie”.

Trata-se de um “crime contra uma voz. Ela foi executada, e deixou uma indagação: a quem interessava seu assassinato?” (F. Molica, L Bustamante). É claro, pode-se suspeitar, mas não são sensatas inferências precipitadas.

Marcelo Freixo: “Quando a investigação for concluída, vamos entender quem fez e qual a motivação do crime. Antes disso, por favor, cale a boca. A velocidade da investigação não pode ter o tempo da nossa angústia” (Isto é, 28mar18).

“Marielle tinha uma atuação que apresentava perigo para determinados setores. Não se executa uma vereadora como ela sem que isso tenha relação com as denúncias que estava fazendo” (Tarcísio Motta, vereador, PSOL, Veja, 21mar18).

Bem, sabe-se exatamente de que denúncias fala o edil, elas estão nas mídias sociais legadas por Marielle. Não obstante, sem investigações institucionais, sem o exercício da legalidade pelas autoridades constituídas, nada prosperará.

Acontece que “o problema maior do Rio é a corrupção endêmica na administração. Você está com um problema que desmoralizou a tropa, tirou dinheiro dos serviços essenciais, tirou toda a confiança da população nas autoridades.

Terá que haver apuração da corrupção do escalão [da PM]. Não há como fugir disso. Se isso não for feito, e não for feito a contento, o problema da desconfiança da população em relação às autoridades continuará.

Se não puder confiar num policial que está trabalhando para você, acabou. É preciso controle permanente e rígido. Policial corrupto é muito pior que o bandido. Ele tem farda, tem a arma do governo e tem a corporação por trás.

Tem que descobrir quem é o corrupto, arrumar as provas, fazer a acusação, obter condenações. Essa investigação leva anos” (Henrique Geaquinto Herkenhoff, Valor, 09mar18, editado). Trata-se, pois, de mal crônico, não é uma crise.

Antes de qualquer coisa a ser feita, contudo – e “está feita” uma intervenção federal comandada por um General –, a questão da Polícia Militar, sem a qual nada acontece, e com a qual tudo pode acontecer, para o bem ou para o mal.

Os executores de Marielle não se preocuparam em disfarçar o crime. “Agiram explicitamente como quem quer mandar um recado. E não apenas para os defensores de direitos humanos, mas para o comando militar da intervenção.

O comando da operação enfrenta, no entanto, forte reação [inclusive negativa de bater continência a general, determinada por coronel comandante de batalhão]. Policiais têm-se rebelado contra ações que minam sua sociedade com o crime.

[A morte de Marielle, todavia, impõe-se moralmente à intervenção]. A ausência de uma apuração rigorosa do crime e dos acontecimentos denunciados pela vereadora do Psol evidenciará que o crime organizado continua a dar as cartas.

Essa trama resiste ao fim da impunidade e ameaça desmoralizar a mais ambiciosa operação doméstica das Forças Armadas” (Maria Cristina Fernandes, Valor, 16mar18, editado). Marielle, uma questão de Estado que estremece o País.

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