terça-feira, 16 julho , 2024
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Léo Rosa de Andrade

O aborto, os religiosos, a dignidade constitucional, o Supremo

A borto não é, e ninguém propõe que venha a sê-lo, recurso contraceptivo ordinário. Quem recorre ao abortamento o faz como último meio para interromper de uma gravidez que se põe, por razões personalíssimas, indesejada.

O que a situação civilizacional da Sociedade brasileira requer é que se excluam do âmbito de incidência dos artigos 124 e 126 do Código Penal os abortos que forem praticados nas primeiras 12 semanas de gestação.

O Caderno Repressivo em vigor é de 1940, reflete uma mentalidade rural, religiosa, patriarcal. As garantias da Constituição Cidadã de 1988 determinaram consideração a preceitos que antes inexistiam na nossa vida cívica.

Código Penal, art. 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção, de 1 a 3 anos; art. 126. Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de 1 a 4 anos.

Em primeira leitura, parece que a controvérsia está resolvida pela norma punitiva. Só que não. A vontade constitucional é outra. Os tribunais superiores têm sempre e mais optado pelas garantias amplas da dignidade da pessoa.

A Constituição Federal de 1988, um marco na Sociedade brasileira, em seu art. 5º trata dos direitos e garantias de cidadania. Sua incidência sobre as demais normas vigentes relativizaram a interpretação que se lhes dava.

Assim, não se pode aplicar o Código Penal desconsiderando os direitos fundamentais das mulheres à vida, à liberdade, à integridade física e psicológica, à saúde, ao planejamento familiar. Numa palavra: à autodeterminação.

Ademais disso, e dando base científica a esses conceitos que são jusfilosóficos, está a opinião quase unânime das instituições médicas. Os Conselhos de Medicina, por maioria, tomaram corajosa posição.

Posicionam-se “a favor da autonomia da mulher em caso de interrupção da gestação. Com base em aspectos éticos, epidemiológicos, sociais e jurídicos, as entidades defendem a manutenção do aborto como crime, mas acham que a lei deve rever o rol de situações onde há exclusão de ilicitude, devendo haver o seu afastamento quando ocorrer a interrupção da gestação em uma das seguintes situações:

a) quando houver risco à vida ou à saúde da gestante; b) se a gravidez resultar da violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida; c) se for comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida independente, em ambos os casos atestadas por dois médicos; d) se por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação” (https://bit.ly/2KxzVUa).

Para os médicos, “entendimentos distintos devem ser respeitados, como se espera num Estado Democrático de Direito, contudo, do ponto de vista ético, entendeu-se, por maioria, que os atuais limites excludentes da ilicitude do aborto são incoerentes com compromissos humanísticos e humanitários, paradoxais à responsabilidade social e aos tratados internacionais subscritos pelo governo brasileiro.

Para os Conselhos, a rigidez dos princípios não deve ir de encontro às suas finalidades. Neste sentido, deve-se ter em mente que a proteção ao ser humano se destaca como apriorístico objetivo moral e ético” (editado).

Esses dizeres médicos são de 2013, antecipando decisões judiciais importantes, como a da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, a qual em 2016 firmou posição de que aborto até o terceiro mês de gravidez não é crime.

Ora, se juristas e médicos estão em afinidade de entendimento, que ocorre para tanto e com tanta emoção se debater acerca da audiência pública que, sobre o tema, acontece no STF? Bem, religião. Religiosos são contra.

Alguém, com atilamento, logo poderia dizer: aos religiosos, que se os respeite, que não se os tente convencer a converterem-se à causa pró descriminalização do aborto. O problema é bem o inverso, todavia.

Os religiosos intentam converter a todos à sua bitola ideológica. Desconsideram outras opiniões e crenças, não respeitam a autonomia intelectual de ninguém; pretendem que sua causa seja a causa do mundo. Não é.

A causa é da Sociedade, é laica e está jurisdicionada. Os religiosos pretextam que o Congresso é o único foro do debate; a Constituição entende que, igualmente, o Judiciário é lugar pertinente para uma conversa definidora.

“Rosa Weber defende que STF opine sobre aborto: ‘Falar em democracia constitucional, que é um conceito que não se reduz ao conceito de democracia majoritária representativa, sem compreender os valores fundamentais que a viabilizam é incidir em mera retórica.

Há que reconhecer o valor da divergência e ter presente o conflito entre os direitos fundamentais envolvido nessas questões constitucionais. Mas há que reconhecer o valor do arbitramento necessário à resolução do problema, por meio de processo público de tomada de decisão, seja no âmbito do Parlamento, seja no âmbito do Judiciário’” (FSP, 04ago2018).

Alguém com “pureza” de crença se espanta indignado: “Como chegamos nisso?” Eu, em contramão, também assombro: “Como nunca saímos disso?” Bem, estamos saindo para algum lugar. Haverá resposta do Judiciário.

Extração de renda via “benefícios” estatais

Função Social do Estado Contemporâneo, Editora do Autor/LADESC, 1984, livro de autoria de Cesar Luiz Pasold. Se fosse possível resumi-lo numa expressão, creio que “consecução do Bem Comum” cumpriria a tarefa.

Escreve-se Estado com maiúscula. Pasold, em gesto cívico, decidiu que Sociedade não merece menos. Desde que fui seu aluno, grafo Sociedade com o status concedido a Estado, e recomendo que assim se o faça.

Trata-se de uma atitude não só de efeito simbólico. A Sociedade criadora, na verdade, por menos, está no nível do Estado criatura. Uma criatura com uma função precípua, a social, com um objetivo essencial: o Bem Comum.

O Estado se consubstancia em instituições por intermédio das quais se administra a Nação. Para tanto, forma-se um corpo burocrático, um funcionalismo público, que seria o agente das diversas funções do Estado.

Não vejo assim o Estado brasileiro. Somos uma máquina burocrática paquidérmica, inchada, cara, corrupta. Somos um Estado capturado por uma elite de funcionários e agentes políticos hábil em se conceder benefícios a si própria.

Cyro Soncini: “Não podemos compactuar com privilégios e regalias garantidos pelo dinheiro público, muito menos podemos continuar mantendo operacional um sistema tão ingrato para com todos os demais catarinenses.

Pela revogação da Resolução 090/1992, que autoriza despesas médico-assistenciais aos deputados estaduais de Santa Catarina. É a hora de dar um basta ao uso privado de recursos públicos” (Ânderson Silva, DC, 25jul18).

“Os funcionários da Câmara Municipal de São Paulo ganharam há um mês o direito de receber até R$ 1.079 mensais para reembolso de gastos com saúde. Dentro da sede do Legislativo já funciona um consultório de atendimento gratuito.

O espaço consome R$ 13,2 milhões por ano. Os serviços são exclusivos para os 55 parlamentares, os 2 mil funcionários da Casa, seus pais, filhos e cônjuges. (Bruno Ribeiro, Estadão, 30jun18, editado).

“Tribunal de Justiça de Santa Catarina decidiu que os colégios militares do Estado não podem mais reservar vagas para filhos de militares estaduais, de funcionários civis da polícia militar e de professores da própria instituição.

Em sua defesa, a PM havia argumentado que tem portaria para disciplinar a matéria desde 2007 e explicou que o colégio foi criado justamente para atendimento prioritário aos filhos e dependentes de militares” (Ânderson Silva, 25jul18).

Quanto é justo que receba um servidor público? Não sei. Mas, somos um país cuja população paga para ser cuidada mais do que ganha. “O Brasil gasta mais com funcionalismo do que EUA, Portugal e França.

O gasto superior do Brasil não se deve a um inchaço ou excedente de funcionários a serviço da população […], mas sim à remuneração acima da média dos servidores, principalmente os funcionários do serviço público federal.

A desigualdade salarial em favor dos funcionários públicos também é elevada quando comparada às remunerações no Brasil […]. O setor público paga em média salários 70% mais elevados do que os pagos pela iniciativa privada formal.

O governo federal paga salários ainda mais altos. Os servidores federais civis ganham cinco vezes mais que trabalhadores do setor privado” (Mariana Carneiro, Maeli Prado, https://bit.ly/2OmDz6q). A Sociedade serve o Estado.

A pesquisa refere salários, não elenca outros ganhos, os denominados penduricalhos, os chamados direitos adquiridos, os horários diferenciados, as emendas de feriados, os pontos facultativos, a indiferença à produtividade.

Os parlamentares não nos são menos custosos: “As Assembleias (2017), tiveram uma despesa total RS 11,2 bilhões, com 1.059 deputados nos 27 estados. O gasto médio por deputado foi de R$ 10,6 milhões” (Moacir Pereira, DC, 19jul18).

Na esfera federal, somados, os salários e os benefícios de cada deputado alcançam aproximadamente a 168,6 mil por mês. Juntos, os 513 deputados chegam a um custo anual de R$ 1 bilhão” (Isabela Souza, https://bit.ly/2rk1HdA).

O Estado brasileiro arrecada tributos e os devolve ao cidadão, quando o faz, de forma diferenciada. Quem pode mais serve-se, legalmente ou com interpretações generosas da lei, do que consegue arrancar da Nação via Estado.

Os que deveriam servir seu povo extraem-lhe renda por meio da máquina pública. No Brasil, a função social do Estado é atender a quem dele se adona e dele goza. Não há Bem Comum. Não foi isso que Pasold ensinou.

Lugar de fala, é preciso falar sobre isso

Algumas controvérsias tomam lugar nos debates públicos. Nem sempre alcançam toda a Sociedade, mas, se encerram importância, merecem atenção. No momento, discute-se quem pode discursar em nome de quem.

Há uma “moda” chamada lugar de fala: um grupo social teria a compreensão de sua situação no mundo, então, desse lugar que possibilitaria a leitura “real” dos próprios predicados, decorreria a titularidade exclusiva do lugar de fala.

Segundo esse entendimento, se uma minoria não falar por si mesma, terá o seu dizer “traduzido” com ou sem má intenção, mas, de toda forma, distorcido. As falas, portanto, não podem ter um intercessor, ou um “procurador”.

“Eu quero falar, não quero ser falado”, dirá quem se há com validade para reivindicar. Diz com razão, embora seja evidente que se alguém se manifesta em nome próprio é porque já abriu uma brecha nos espaços sociais dos falantes.

A “moda” lugar de fala construiu uma narrativa que objetiva, em nome de uma posição pretensamente exclusiva, desautorizar o outro que, carente de um alvará de origem, estaria deslegitimado para dizer sobre uma causa.

A questão é que a luta para que todos falem é de todo mundo. É inaceitável imaginar-se a substituição de alguém, mas é igualmente impróprio que alguém se insurja contra sua fala ser repercutida por quem concorde com ela.

As hierarquias delimitadoras de expressão foram erigidas por autoritarismos diversos; o combatê-los não atine somente às suas vítimas. As condições sociais demarcadas não são causa que interessa precipuamente aos injustiçados.

Relações sociais injustas, não obstante vitimarem mais objetivamente certos grupos, subjetivamente insultam toda mentalidade libertária. Lutas igualitárias, pois, não têm posse, ainda que a desigualdade faça vítimas “preferenciais”.

A afirmação de situações no mundo, é certo, é feita a partir das diferenças reais que existem na ocupação dos lugares de poder. Quem os ocupou no correr na História sempre produziu justificativas para o estado de disparidades.

Relações sociais díspares produzem e abrigam disparidades, valorizam e reproduzem dessemelhanças. E as vítimas das desigualdades, no geral das vezes, não lutam para dar-lhes um fim geral, mas para o sucesso num drible particular.

Resta que os sistemas de dominação subsistem, em boa parte, com a colaboração de seus próprios dominados. O lugar de fala “original”, numa tal situação, estaria “traído”, já, pelo vício de comprometimento de um titular colaboracionista.

Então, seja se consorciando com quem queira se livrar de injustiças, seja à revelia do oprimido desavisado, seja contra a vítima que colabora, a luta por franquias libertárias é direito e obrigação de toda e qualquer mentalidade livre.

Quem quer que deseje manifestar-se contra modos opressivos está no lugar de fala adequado para realizar sua manifestação. As injustiças da vida, todas as injustiças da vida não são reduzíveis a situação de propriedade.

Hierarquias sociais oprimem, opressões reafirmam hierarquias sociais. Hierarquias distinguem. Não pode haver nenhuma distinção na construção de igualdades. Nem o sujeito mais violado está melhor posicionado para essa fala.

A luta para democratizar possibilidades de falar não será pretextada como uma falácia da autoridade: ao invés de reivindicar a ampliação de atores falantes, apela-se a uma determinada condição no mundo para discorrer sobre ela.

Talvez se careça é de escuta. Muitos do que estão em posição de falar supõem-se com o saber adequado para dizer sobre o outro. Podem saber, ou não. Mas o outro certamente tem o que dizer e o direito de ser ouvido.

Como a fala tem que ser franqueada, igualmente, a escuta deve ser exercitada. Mais por narcísicas pequenas diferenças do que por legitimidade, disputa-se a titularidade de narrativas, deslembrando-se de contemplar outras vozes.

A disputa pelo lugar de fala é uma disputa de poder. É legítimo disputar poder. Talvez não seja conveniente, contudo, contender com aliados na ampliação de possibilidades de mais distribuição de poder. É preciso falar sobre isso.

A tua vida, tu a repetirias? E o teu lugar, o Brasil?

Na vida, “a gente quer ter voz ativa no nosso destino mandar mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá”. E aí “roda mundo, roda-gigante rodamoinho, roda pião o tempo rodou num instante nas voltas do meu coração”.

Pronto, a vida acabou. Vida de conveniências ou de revolução. Todo mundo dançou. “Foi tudo ilusão passageira que a brisa primeira levou no peito saudade cativa faz força pro tempo parar” (Fragmentos de Roda Viva, Chico Buarque).

O tempo não para Cansado de correr sem pódio de chegada mas se você achar que eu tô derrotado saiba que ainda estão rolando os dados porque o tempo, o tempo não para (Fragmentos de O Tempo Não Para, Cazuza).

No fim de contas, em que ficamos? Lamento e me advirto: ao fim e ao cabo, nada. Não ficamos. A vida é o meio. A vida é caminho. “Penso que cumprir a vida seja simplesmente compreender a marcha e ir tocando em frente”.

“Eu vou tocando os dias pela longa estrada, eu vou Estrada eu sou Cada um de nós compõe a sua história Cada ser em si Carrega o dom de ser capaz E de ser feliz” (Fragmentos de Tocando Em Frente, Almir Sater).

Mas, “caminhante, não há caminho se faz caminho ao andar ao andar se faz caminho e ao voltar a vista atrás se vê a senda que nunca se há de voltar a pisar” (Fragmentos de Caminhante, Antônio Machado).

O caminho são teus passos, caminhante. Teus erros e teus acertos são tuas pegadas. Nada mais há. E então, se tiveres que recomeçar? Refarias teus passos? Pisarias nas tuas mesmas pegadas? A indagação é de Friedrich Nietzsche.

O eterno retorno: Se te dissessem que eternamente reviverias, como a viveste, a tua própria vida? Tu rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou considerarias que jamais ouviste algo mais divino?

Se esse pensamento tivesse o poder de fazer efeito sobre ti, diante de tudo e de cada coisa, tu quererias repetir a tua vida uma e inúmeras vezes? Ou a tua vida, como a vives, seria um pesado fardo, se a tivesses que repetir?

Se pudesses repeti-los, tu reconduzirias teus passos por sobre as mesmas pegadas que deixaste no caminhar pela vida? Senão, que refarias do teu existir para que o eternamente repeti-lo te fosse eternamente prazeroso?

A resposta é de Friedrich Nietzsche: a vida como obra de arte. A construção de uma ética no processo de subjetivação de certos valores e de exclusão outros, a qual propicie um modo de viver que favoreça a existência do sujeito.

Estética da existência: crítica dos valores generalizantes, que condicionam aos critérios supostamente universais e pretensamente verdadeiros as infinitas possibilidades de experimentar a vida, empobrecendo-a.

As “notas” da composição individual, contudo, não estão em outro lugar senão no entorno do indivíduo, onde a vida concreta acontece. Sartre acode: se a existência precede a essência, importam as condições de existir.

Ortega y Gasset: “Eu sou eu e minhas circunstâncias, se não cuido delas, não cuido de mim”. Sou indissociável da realidade. Quando decido sobre mim mesmo faço-o nas condições de possibilidade do meu momento e do meu lugar.

Caminhante, o caminho se faz ao caminhar. Certo, o teu caminho muito particular tu o fazes ao andar mesmo. Mas, e quanto ao sítio de tuas caminhadas? Que paisagens tu imaginas que oferecerás a ti mesmo, na tua caminhada?

A paisagem da tua estrada é a tua companhia, é o teu lugar. Estamos condenados a viver em nossas circunstâncias e, nelas, a fazer escolhas. Eu dou sentido às minhas circunstâncias; as minhas circunstâncias dão sentido a mim.

Enfim, é de saber: repetirias a tua vida exatamente como a viveste? Se sim, fizeste dela uma obra de arte. Te compuseste bem a ti mesmo e serás eternamente assim. Mas tu e tua excelência de ser não viverão só.

Vocês viverão no Brasil (Que País é Este?, Renato Russo), num derredor que não está nada bem. Se não cuido das circunstâncias, não cuido de mim. O tempo não para. Caminhante, no caminho haverá eleição.

Futebol, histeria, derrota, realidade

Não acredito nos que exaltam os benefícios das práticas desportivas e declaram o futebol como a sua escolha de atividade física. A grande parte dos brasileiros não têm o futebol como uma hipótese de exercício.

A verdade é que, “o número de pessoas que faz do futebol uma atividade física de lazer caiu. De 2006 a 2012, o percentual foi de 9,1% para 7,2%, uma redução de 20% em sete anos (Hérika Dias, https://bit.ly/2NBcHPE).

Essa alegria toda diante do campeonato mundial de futebol parece-me puro efeito de mídia. A participação da TV no investimento publicitário é conta que se calcula em bilhões de reais e é “democraticamente” distribuída.

“Mercado movimentou R$ 134 bilhões ano passado, ante R$ 129 bilhões em 2016; fatia aportada na televisão oscila negativamente, mas deve se recuperar neste ano por conta da Copa do Mundo” (https://bit.ly/2J51ymT).

Não, o brasileiro não gosta exatamente de futebol. Não apenas não o joga; não gosta, mesmo, como parece. O brasileiro, todavia, responde bem ao investimento que máquinas de propaganda fazem de jogos e de jogadores.

Se não gostássemos apenas do fartamente propagandeado e posto por intermédio de televisão nas nossas salas domésticas, certamente apreciaríamos, tanto quanto apreciamos os jogos “oficiais”, os campeonatos femininos.

Homens ou mulheres jogando, o esporte deveria ser o mesmo. Para os investimentos, não, contudo. Alguém poderia falar que isso não decorre do gosto ou desgosto pelo esporte, mas da boa dedicação brasileira ao machismo.

Os números: Tomem-se dois campões, Marta e Neymar. Salário anual: 1,9 milhões contra 137 milhões; gols pela seleção 103 contra 55; ganho por gol, 18 mil contra 2,5 milhões. Claro, há machismo. Mas, claro, há investimento.

O Brasil tem se destacado em outras modalidades desportivas. Homens e mulheres têm obtido através dos tempos boas colocações no vôlei, basquete, jiu-jtsu, natação, judô, tênis, boxe. Há notícias a respeito? Poucas.

Os jornais brasileiros têm cadernos especiais para futebol. Que outro esporte mereceu meia página? As demais mídias não dispensam melhor tratamento às várias modalidades desportivas em que o Brasil se destaca.

Li há tempo, creio que no Jornal do Brasil, que lá por 1950 havia no estado do Rio de Janeiro 25 mil campos de futebol. O jogo era exercitado. Em 1980 o número reduzia-se a 450. Hoje o esporte é “praticado” diante de telas.

Se houver interesse em compreender o tanto que o futebol se afastou do significado de competição esportiva, basta por em um buscador de internet futebol, mídia e corrupção no Brasil. Quem supõe que política é coisa suja…

Felizmente há vários dados estatísticos a nos dizer que grande parte dos brasileiros se está afastando da violenta histeria coletiva que o futebol provoca. Estamos bem longe da unanimidade nacional que um dia talvez tenhamos sido.

Levantamento abrangente: “Quantos brasileiros são apaixonados pelo futebol? Uma pesquisa da Ispsos, empresa independente global na área de pesquisa de mercado presente em 88 países, buscou responder esta pergunta.

De acordo com um estudo da companhia, que entrevistou 42,8 milhões de brasileiros, 40% das pessoas têm interesse ou grande interesse por futebol. Quanto a esportes em geral, o número é 74%” (https://bit.ly/2J2YVSy).

Os 74% deveriam merecer o devido respeito dos governos, sobretudo nas escolas, mas não menos da mídia em geral. O futebol, afinal, é apenas o terceiro esporte que mais praticamos (Hérika Dias, https://bit.ly/2NBcHPE).

Circula uma frase que encerra a concepção de muita gente: “Derrotados na Copa, caímos na real”. Uma imagem excessiva, mas é apropriada. Mesmo o futebol não sendo o sentido da vida de todos, praticamos absurdos.

Nem transar nós transamos. Amantes ficam para depois das partidas: “Jogos do Brasil derrubam acesso em app de relacionamento extraconjugal”. A Ashley Madison é o maior site de relacionamentos extraconjugais do mundo.

Pesquisa que o sítio de amor paralelo realizou constata que “o número de acessos, no Brasil, caiu entre 40% e 53% durante o torneio mundial”, ainda que 59% prefiram estar com a amante na hora da partida (https://abr.ai/2m6kdG5).

Saímos da realidade. Encerramos o expediente público, empresas liberam seus empregados. Tudo para. Gritamos, corneteamos, bebemos. E não jogamos futebol, só o vemos pela televisão. Não bastasse, perdemos.

Política: mais coletivo, menos personalismo

“A política toda está em crise, todos os partidos estão. No País, não há dois lados mais na política. É a sociedade contra a política. Não se tem mais um conflito de partidos ou de pensamentos” (José Serra, Estadão, 24jun18).

“A sociedade mudou muito, os novos meios de comunicação estão à disposição do eleitorado” (Fernando Henrique Cardoso, Estadão, 24jun18). As mídias sociais desnudaram os “modos” de se exercer o poder político.

Levantamento do Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas sobre a próxima eleição: “83% dos pesquisados declararam ter emoções negativas; enquanto apenas 14% estariam imbuídos de sentimentos positivos.

Sentimentos negativos: ‘preocupação’ (33%); ‘indignação ou raiva’ (27%); ‘tristeza’ (12%) e ‘medo’ (11%). Sentimentos positivos: ‘esperança’ (12%); ‘orgulho’ (1%) e ‘alegria’ (1%).” (Gilberto Amendola, Estadão, 24jun18).

Estamos desencantados: “Descrédito nos partidos atinge 8 em 10 brasileiros. Estudo realizado por instituto ligado a universidades públicas (INCT) aponta número elevado nunca observado em levantamentos similares anteriores.

Razões mais citadas para a antipatia dos brasileiros: há muita corrupção nos partidos (68,3%); partidos não representam interesses dos eleitores (48,4%) (Essas, eu diria, são as razões de um desgosto de “senso comum”).

Partidos não têm programa político a oferecer (18,9%); oferecem pouco espaço de participação aos cidadãos (17,8%); políticos não dão importância para as siglas (13%) (Aqui, vejo, há senso crítico) (Paulo Beraldo, Estadão, 23jun18).

Tenho a pretensão de identificar pelo menos uma das causas da desconsideração dos políticos por programas, do seu mais absoluto descompromisso com siglas, do seu desinteresse pelo engajamento dos cidadãos na vida partidária.

Líderes religiosos, “artistas, apresentadores, e esportistas disputam uma vaga […]. A história recente mostra que a estratégia ‘candidato-celebridade’ vem ganhando espaço nas últimas eleições” (João Pedro Pitombo, Estadão, 18jun18).

Não diria celebridade, mas notoriedade. Candidatam-se tipos notórios. Elegemos tipos notórios. Vota-se na popularidade de candidatos sem nenhum nexo com política. Isso tira o próprio sentido da organização partidária.

A “culpa” disso advém, sobretudo, do nosso sistema eleitoral. Votamos em pessoas, não em partidos. A proeminência de personalidades, não de ideários partidários. A “solução” seria substituir o voto nominal pelo voto em lista.

“O voto em lista fechada. Escolheríamos deputados federais e estaduais e vereadores de uma maneira diferente da que conhecemos em 1945. Nós, hoje, preenchemos esses cargos usando outro princípio, o voto nominal.

A diferença entre os dois está expressa em seus nomes. No sistema atual, nominal, votamos em lista partidária aberta, então, escolhemos basicamente uma pessoa. Com voto em lista fechada, escolhemos um partido.

Com lista fechada, o voto não seria dado puramente aos partidos, mas a uma relação de candidatos previamente ordenada pelas siglas e conhecida pelos eleitores. Não deixaríamos de saber em quem estaríamos votando.

Se fosse adotada, contudo, essa forma, a lista fechada, a primeira reação seria de forte desagrado da opinião pública. As pesquisas mostram que a população não gosta da ideia. A discordância chega a 80%.

O eleitor acredita que ao não poder votar em determinada pessoa seu direito ficaria menor. Ao não escolher diretamente, passaria a ter um voto de segunda classe, que delegaria aos partidos a decisão sobre a representação.

Quem valoriza os partidos não tem dúvida sobre a superioridade do voto em lista fechada. As disputas eleitorais deixam de ser competições entre indivíduos. Os protagonistas da vida política passam a ser os partidos.

O eleitor aprende, na prática, que a política não é [ou deveria não ser] o domínio das singularidades, mas da ação coletiva organizada. Ele não é obrigado a encontrar, no cardápio de individualidades, uma em particular.

O que lhe cabe é escolher um grupo, um conjunto de pessoas que, coletivamente, se propõe a representá-lo com uma plataforma explícita. Existe quem concorda com a ideia, mas acredita que ‘não estamos prontos’.

Quem opõe a ressalva diz que nossos partidos são frágeis e coronelistas demais, que o voto em lista fechada cristalizaria o poder de cúpulas partidárias enferrujadas e autoritárias” (Marcos Coimbra, https://bit.ly/2MzoNaW, editado).

É possível que assim seja. Mas, se adotássemos esse sistema, muito provavelmente modernizaríamos a legislação partidária e estabeleceríamos fórmulas que evitassem os tantos partidos de aluguel e os personalismos.

Todos os dados trazidos acima mostram desconfiança, descontentamento, um sistema esgotado. As razões de quem desgosta de política com “senso crítico” recomendam fortalecer os partidos, não as personalidades.

Intervenção militar: um Chaves de direita já?

Há quem deseje militares governando o Brasil. Não suponho que busquem alguém com carreira militar como candidato em eleições democráticas, submetido ao escrutínio popular, eleito legitimamente governante.

Nada disso. Essa turma não pensa em oferecer ideias à apreciação pública. Os solicitantes de “intervenção” não portam qualquer proposta para a “salvação nacional”. Eles são odientos e só ambicionam o império da odiosidade.

Não os suponho fundando um partido, o que seria legítimo. Sua vocação tende à vassalagem não à militância. Sem imaginação de vida pública, resumem-se à expectativa de um déspota truculento que se imponha por eles.

A aventura de uma intervenção militar, contudo, está mais para o devaneio de quem quer calar o “inimigo” do que para os militares propriamente ditos. O atropelo à vida democrática, aliás, carece de mais do que gosto por ditadura.

Para quem ignora, cabe dizer: os militares tomaram o poder em 1964 dentro de uma conjuntura que nem mesmo foi articulada por eles. As ditaduras que se instalaram por toda a América Latina foram um plano de ordem mundial.

Guerra Fria: entre 1945 e 1991 vivia-se uma situação de conflito político, espionagem, propaganda, controle econômico, tensão militar, guerra, guerrilhas e golpes, corrida armamentista, disputa esportiva, tecnológica, midiática.

O planeta era um tabuleiro de xadrez. Dois jogadores. As relações internacionais eram uma disputa geopolítica entre Estados Unidos e União Soviética. Nós compúnhamos, necessariamente, o território físico e ideológico dos EUA.

Fomos incluídos entre os tantos países que sofreriam um golpe militar. Durante dois anos a “Revolução” de 1964 foi preparada. Articularam-se, dentro do país, os militares, a igreja católica, os empresários conservadores, a mídia.

Os Estados Unidos garantiram apoio de inteligência e logística. Montou-se a Operação Brother Sam. Em caso de reação de João Goulart, Leonel Brizola, militar ou popular, as forças armadas estadunidenses invadiriam o Brasil.

Não careceu de tanto. Goulart não quis reagir e provocar, em sua expressão, “um banho de sangue”. Brizola já não governava o Rio Grande do Sul, não contando com a Brigada. Os militares legalistas cederam. O povo, nada.

Perpetrada a derrubada do Governo, inclusive com declaração de vacância da Presidência da República pelo Congresso, o mais ficou fácil. A desculpa de reordenar o País e marcar logo eleições estendeu-se por duas décadas.

“Lenta gradual e segura”, foi a retirada dos militares. Saíram ilesos, apoiados em uma conciliação de saída por acordo de classes dirigentes. Anistiaram-se a si mesmos de seus crimes e garantiram que não haveria “revanchismo”.

Nem a Comissão da Verdade de lavra petista fez valer punição às barbaridades que apurou. Sabe-se quem torturou, quem assassinou, quem fez desaparecer prisioneiros. Sabe-se tudo o que bastaria saber. Vai-se fazer nada.

O País, inconformados alguns, eu entre eles, se apaziguou, ou foi declarado apaziguado. Os guerrilheiros que nos salvariam, ou nos alinhariam aos soviéticos, democraticamente souberam ganhar votos. A sobra civil da Ditadura sobreviveu.

Tenho ojeriza a qualquer forma de ditadura. Lamentei que brasileiros se tenham feito subservientes do imperialismo norte-americano. Não lamentaria menos se vivesse em qualquer lugar em que vingasse o militarismo soviético.

Felizmente, nossos males, que não são pequenos nem poucos, mas não são ditadura, hoje estão sob as contas de nossas instituições políticas e legais. Há gosto e contragosto com os fatos, mas elas desempenham a tarefa.
Agora, essa arruaça reacionária pedindo golpe das Forças Armadas. Deviam ignorar menos o contexto, inclusive a oportunidade de um golpe militar. Quem o articularia, quem o daria, quem o sustentaria? Sob que argumento?

Os católicos têm um papa que conviveu com a ditadura argentina e que não gostaria de repetir sua própria história; a mídia nacional não está propensa a tal peripécia; o empresariado não arriscaria seus negócios.

O povo não seguiria outra “marcha da família, com deus, pela liberdade”, os ricos não investiriam seu dinheiro, os governadores não emprestariam seu prestígio. A ONU não acataria. Nem os militares estão dispostos à coisa.

O último militar golpista (de esquerda?) aqui por perto foi o Chaves. Tudo o que os trânsfugas da vida democrática podem conseguir é um Chaves de direita. Se forem menos estúpidos, não arriscarão isso para o Brasil.

Já não somos devotos da bola

Não sei se algum dia o futebol teve a importância que os sistemas de comunicação lhe davam e dão. Suponho que só a ostentação ruidosa de rádios e televisões faziam e fazem o futebol ser a unanimidade nacional.

Aliás, o futebol nem se constitui exatamente num esporte que o brasileiro pratique. Os jogos são mais espetáculos midiáticos do que exercício esportivo. Futebol, já faz muito tempo, se o ouve ou se o vê; pouco se o joga.

Conforme estudo da Universidade de São Paulo, “A paixão dos brasileiros pelo futebol pode ser grande, mas o número de pessoas que faz do esporte uma atividade física caiu. De 2006 a 2012, o percentual foi de 9,1% para 7,2%”.

A caminhada (18%) e a musculação/ginástica (11,2%), segundo o texto, ultrapassaram o jogo de bola e são as atividades físicas mais praticadas pelos brasileiros em suas horas de folga (Hérika Dias, http://bit.do/em8bT).

Quanto à grande paixão dos brasileiros por futebol, não é o que se dessume dos dados trazidos pelo Datafolha (FSP, 12jun18,): “O desinteresse dos brasileiros com a Copa disparou às vésperas do início da disputa na Rússia.

Segundo pesquisa nacional, 53% dos brasileiros afirmam não ter nenhum interesse pelo Mundial. O desinteresse se destaca entre as mulheres, 61%. Apenas 18% dos entrevistados dizem ter grande interesse pela competição”.

Para reflexões pessoais, destaco uma especificação sobre o perfil dos entrevistados. Têm grande interesse na Copa, considerando-se a escolaridade: ensino fundamental, 24%; ensino médio, 18%; ensino superior, 10%.

Os dados gerais confirmam resultados de pesquisa anterior do mesmo instituto: “O número de brasileiros que dizem não ter interesse nenhum por futebol cresceu consideravelmente nos últimos oito anos.

Em pesquisa Datafolha (janeiro de 2018), 41% dos entrevistados disseram não ter interesse por futebol. O índice é dez pontos percentuais maior que o de pesquisa realizada em abril de 2010” (http://bit.do/em8hV).

O Brasil sempre foi mostrado como o “país do futebol”. Vendemos essa narrativa para nós mesmos e para o mundo. O mundo passou a nos ver dessa maneira; nós nos ufanávamos de ser considerados desse jeito.

O futebol nos foi consubstanciado como vínculo social. Ele irmanava o povo em torcidas. O pior de nossa sociedade era desconsiderado quando nos fazíamos melhores por nossos jogadores, sobretudo os de seleção.

Patriotas de Copa. As crônicas de Nelson Rodrigues copiladas n’A Pátria de Chuteiras. Para ele, o nosso “complexo de vira-latas” convertia-se em orgulho quando nosso futebol se destacava. Era o que nos referenciava.

Nelson, em sua coluna n’O Globo, À Sombra das Chuteiras Imortais, narrava com dramaturgia sobre futebol com nacionalismo e paixão. Não sei se acreditava nos seus escritos, ou se o seu gênio inventava a redação.

Sei que o dramaturgo é “culpado” por contribuir com essa nossa ideia de sermos o que há de melhor em futebol. Disso adveio, já não sei por culpa de quem, que ser bom em futebol é coisa importante para o destino nacional.

Não penso que seja. Embora reconheça que o futebol tenha cumprido o papel de consolidar uma identidade brasileira, essa identidade não se mantinha e não se mantém após os noventa minutos de uma partida.

Talvez o momento mais significativo dessa mistificação tenha sido a Copa de 1970: “De repente é aquela corrente pra frente Parece que todo o Brasil deu a mão Todos ligados na mesma emoção Tudo é um só coração!”.

Vivíamos um contraste. A euforia do futebol abafava os gritos dos porões da Ditadura. Garrastazu Médici de rádio de pilha nos estádios; seu governo autorizava a tortura, os assassinatos, o desaparecimento de presos políticos.

Não creio, mesmo assim, que futebol seja o “ópio do povo”, como diziam certos revolucionários. Futebol, afinal, é apenas um esporte. Nós só mistificamos a coisa. Não criamos desportistas, mas devotos da bola.

Parece que isso acabou. Nos demos conta que temos mais o que fazer. Entre outras tarefas, uma eleição. Em quem acreditar? Em quem sustente o cabimento do discurso. Não creia em quem diga que vai ser fácil sair do buraco.

O Brasil, uma certa barbárie.

O discurso da igualdade de oportunidades constitui-se em consenso nacional. É uma ideia valorizada. Reconhecê-mo-la, entretanto, enquanto ideia “em tese”. Em termos de igualdade, os brasileiros não vamos além das falas.

Aqui caberia o anexim: “A teoria, na prática, é outra coisa”. Sempre alguém poderia contestar que a teoria é outra coisa na prática porque o praticante não se compromete o suficiente com a concepção teórica. É o caso do Brasil.

Se aproximássemos práticas e discursos, estaríamos em outras condições. O Brasil é o 10º país mais desigual do mundo, conforme Relatório de Desenvolvimento Humano elaborado pelas Nações Unidas (http://bit.do/emAzL).

Uma realidade muito difícil de ser mudada. “Brasileiros que nasceram no topo da pirâmide social têm quase 14 vezes mais chance de permanecerem nesse estrato do que as pessoas oriundas da base têm de chegar até lá.

Apenas 21,2% dos filhos de pobres vão para o topo da pirâmide. Já no estrato rico, a imobilidade social – o percentual de filhos que se mantêm no mesmo estrato do pai – é alta, de 54,2%”. (Fernanda Perrin, IBGE, FSP, 16dez17).

“Uma das principais funções da escola é contribuir para que as sociedades se tornem mais igualitárias em termos das oportunidades que oferecem aos seus cidadãos. O estudo do IBGE mostra que continuamos falhando gravemente.

A pesquisa aponta que ‘existe uma barreira intergeracional para o acréscimo de escolaridade, dependendo da educação paterna’. Ou seja, nosso sistema educacional não consegue eliminar a desigualdade que vem do berço.

Um dado que ilustra isso claramente: apenas 4,6% da população brasileira de 25 a 65 anos cujos pais não tiveram nenhuma instrução formal conseguiu chegar ao ensino superior” (Érica Fraga, FSP, 16dez17).

“Mais de 70% dos pais dos alunos que estão entre as mil melhores notas do Enem são formados em ensino superior ou pós-graduação. Além disso, quase 25% deles têm renda familiar acima de R$ 17,6 mil e quase 90% nunca trabalharam.

[São] da elite intelectual e econômica. Muito diferente do total de candidatos. Menos de 14% dos pais dos inscritos têm a mesma formação, só 0,7% vive com a mesma renda e 44% nunca trabalhou” (R.C. e L.F.T., Estadão, 14jan18).

O estudo corrobora ainda outras evidências numéricas, como a de que pretos e pardos são mais punidos pelas nossas falhas educacionais. Ademais de desiguais em oportunidades, somos, portanto, seletivamente desiguais.

O 3º Seminário Internacional de Educação Integral “reuniu pessoas de diversos segmentos para discutir formas de […] garantia do direito ao acesso de todos a uma educação de qualidade em um país de contrastes.

“Natacha Costa, do Cidade Escola Aprendiz, defendeu que ‘se a escola pública pode ser a máquina de fazer democracia, precisamos reconhecer quem somos, o que queremos e para onde queremos ir’” (Estadão, 17dez17).

Bem, somos uma discursada democracia educacional na qual 92% dos alunos com as melhores notas no Enem são egressos de escola privada, o que mostra a discrepância entre a intenção discursada e a protagonização que se corromperá.

As consequências disso tudo, todos sabemos todos os dias, pelas tristes informações que os noticiosos nos trazem. O nome da falta de educação é ignorância. A ignorância diuturnamente nos complica o fruir a vida no Brasil.

Talvez se encontre alguma expressão de pessimismo no texto. Mas, infelizmente, não. Tratam-se de dados colhidos. Os dados não são mesmo bons. “Brasil despenca 19 posições em ranking de desigualdade social da ONU.

Esse é o diagnóstico revelado pelo Pnud/ONU, com dados de 2015. O país ocupa o 79º lugar entre 188 nações do ranking IDH, que leva em conta indicadores de educação, renda e saúde” (http://bit.do/emANr).

Então, ficamos assim: A “OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) mantém um ranking da educação em 36 países, no qual o Brasil, atualmente, amarga a penúltima posição” (http://bit.do/emAN4).

Daí, por ilação, pode-se concluir sobre os nexos entre essas tristes coisas. No tanto que uma coisa leva à outra, adviria da nossa desigualdade a nossa deseducação, e da nossa deseducação, a nossa desigualdade. Círculo vicioso.

Falta de chance na busca igualitária por posição digna na vida. Engendramos e preservamos, com muito discurso e pouca prática, certa barbárie. No mundo, o “Brasil é o primeiro colocado em ranking de violência” (http://bit.do/emAQK).

Caminhoneiros, militares, coisas inteligentes, coisas estúpidas

O deslocamento de mercadorias, as essenciais sobretudo, é questão de segurança nacional para qualquer país. É impensável a vida social urbanizada sem o devido abastecimento de combustível, comida, remédios etc.

Às maneiras de deslocar bens dá-se o nome de modal. Os modais de transporte são o ferroviário, o rodoviário, o hidroviário, o dutoviário e o aeroviário. A geografia do país indica o modal apropriado; o nosso seria o ferroviário.

Nesse aspecto, quem, no clima da “greve dos caminhoneiros”, clama pela “volta dos militares” como solução do problema, batalha em grave equívoco. Os militares são os responsáveis pelo desmonte das ferrovias no Brasil.

É verdade que Juscelino Kubitschek, no afã de modernizar a nação, incentivou a indústria automobilística, logo, as estradas. Mas JK não desatinou como os militares, que desmantelaram ferrovias em pleno funcionamento.

Resultado: o Brasil é o único país de dimensão continental que “escolheu” o modal de transportes rodoviário para realizar prioritariamente o transporte de longa distância e o suprimento urbano de mercadorias, essenciais ou não.

Os militares, aliás, não nos deixaram apenas essa triste “herança”. Além da violência institucionalizada para sustentar uma ordem não advinda da paz democrática, mas da repressão policial, os militares foram extremamente corruptos.

Por exemplo: “Ditadura abafou apuração de corrupção, revela documento. Papéis britânicos detalham como o Brasil chegou a abrir mão de indenização por compra superfaturada de navios” (Daniel Buarque, FSP, 02jun18).

São documentos do Reino Unido; a investigação era de superfaturamento de R$15 milhões; os fatos ocorreram nos governos Médici e Geisel. E não se vá dizer que a Inglaterra compunha uma “organização comunista”.

Pode-se afirmar com o testemunho da História: os militares não tinham legitimidade, assassinaram oponentes, roubaram e foram incompetentes inclusive no planejamento geopolítico estratégico, coisa de que tanto se orgulhavam.

Resultado: a logística do transporte no território brasileiro apresenta predominância de rodovias. “Em 2009, segundo a Confederação Nacional de Transportes, 61,1% de toda a carga transportada no Brasil usou o sistema modal rodoviário”.

Apenas 21,0% passaram por ferrovias. Pelas hidrovias e terminais portuários fluviais e marítimos (não obstante a navegabilidade de nossos rios e a nossa tranquila, imensa e habitada costa), somente 14,0% (http://bit.do/ek3ey).

Dependemos, pois, de caminhões. Se pensarmos que o transportado por ferrovia ou água necessita de caminhões para alcançar os pontos finais, somos completamente dependentes de caminhões no longo e no curto percurso.

Caminhões dependem de diesel. O item diesel, pela média dos dados disponíveis na internet, fica em torno de 45% do custo do caminhão utilizado no transporte. O custo diesel, portanto, é decisivo para o caminhoneiro.

O Governo Temer (Temer, o sócio de Lula e Dilma) além dos seus problemas de vício de origem, foi acuado pelo Ministério Público por denúncias de corrupção. Não pôde governar. Não obstante, começou tentando salvar a Petrobras.

O petismo saqueou a empresa: “Petrobras teve prejuízo líquido de R$ 14,824 bilhões em 2016. Em 2015, a estatal registrou prejuízo recorde de R$ 34,8 bilhões. Em 2014, as perdas somaram R$ 21,6 bilhões” (http://bit.do/ek3j3).

O esforço de recuperar a estatal era legítimo, mas, lamentavelmente, restringiu-se ao aspecto contábil, desconsiderando o peso relativo do diesel no custo do sistema de abastecimento nacional, feito sobre pneus de caminhões.

A gestão governamental de logística para o transporte de cargas não pode deixar o preço do combustível de caminhão ao sabor do mercado, mas haverá de administrá-lo como um produto-insumo a ser politicamente sopesado.

A “crise” talvez nos traga um estadista com a responsabilidade inteligente de recompor nossos modais de transporte. Um político que entenda que depender das oscilações de preço do petróleo é entregar-nos à insegurança.

Meu temor é que o sectarismo vigente nos cinja a demagogos ou autoritários corruptos para governar a recomposição do nosso histórico descaso com políticas de transporte e abastecimento. Seria repetir erros. Seria uma estupidez.

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