Um gari nobre, aristocrata

Excelente o artigo Eleições 2008 no espaço ‘Opinião’ de ontem. Informações claras, objetivas e com linguagem acessível. O Brasil é referência em questões eleitorais não somente por razões técnicas – urna eletrônica -, mas, também, pela adequação constante entre democracia representativa e legislação eleitoral.
O sistema democrático não é um sistema banal, voltado apenas para a quantidade de votos, mas, principalmente, para a busca de regras que promovam a qualidade do voto.

Domingo passado, defendi no meu Contraponto o que chamei de democracia aristocrática. Um leitor de Florianópolis (jornalista e professor) pediu que eu explicasse melhor o sentido da expressão. Caro leitor, as palavras são como copos que carregam significados diferentes no tempo e no espaço. Tais copos carregam às vezes água, outras vezes sucos, diferentes, em lugares e datas também diferentes.

O cientista político Giovanni Sartori afirma que a semântica política sugere a análise laboratorial das mudanças de significados das palavras no âmbito político. O nome do secretário florentino – Maquiavel -, para citar um exemplo, deu origem a uma palavra – maquiavélico – que faz parte da língua portuguesa e designa um significado incompatível com o pensamento de Niccolò Machiavelli: Maquiavel não foi maquiavélico.

Vejamos outra palavra: burguês. Quem pensa no habitante do burgo, comerciante medieval? Geralmente, burguês e burguesia remetem nosso pensamento para esnobe, explorador. Podemos chamar um burguês de empreendedor ou de homem (ou mulher) de negócios, mas experimente chamá-lo de burguês, explicando que está usando o sentido literal da palavra. O mesmo vale para a palavra “reformista”, tão cara no âmbito da democracia social (ou social-democracia). Até 1989, reformismo era palavrão político que significava paliativo. Hoje, reformismo designa mudanças na estrutura social por meio de reformas (estruturais).

E o que dizer, fora do âmbito político, da palavra preguiça? Antes, era vício. Hoje, virou virtude: quem quiser ter mais qualidade de vida precisa aprender a trabalhar menos e ser um pouquinho mais preguiçoso. A preguiça, na dose certa, é virtude. E o vício combatido nos sete pecados capitais é a acídia, diferente do que chamamos de preguiça.
A semântica gera perplexidades por ser uma ciência que identifica as revoluções de significado que ocorrem no uso das palavras. Num dado momento, alguém começa a usar uma palavra ou expressão atribuindo a ela significado diferente, e isso pode ser uma operação perdida ou vitoriosa.

No caso da expressão “democracia aristocrática”, aristocracia não está indicando nobreza de sangue, ou nobreza legal (adquirida por meio de títulos). Não existe mais no Brasil (ainda bem) nobreza de sangue. E, se existisse, seria algo mais próximo à oligarquia que a aristocracia. As palavras aristocracia e nobreza são palavras belas, que indicam qualidade, no sentido literal delas, e não no sentido histórico-tradicional (nobreza de sangue).

Nobreza moral e aristocracia democrática (poder dos melhores), mas quem seriam os melhores eleitores e candidatos? A resposta está no Notisul de ontem. À página 14, o juiz Luiz Fernando Boller apresentou as regras que tornam os candidatos e os eleitores melhores. E à página 4, lemos um exemplo ainda mais elucidativo do que seja realmente o poder dos melhores (aristocracia): “Um gari de 24 anos, que trabalhava para a prefeitura de Vitória (ES), encontrou uma sacola com cheques enquanto limpava bueiros em uma rua movimentada e descobriu que havia mais de R$ 400 mil em cheques. Ele procurou a polícia e devolveu tudo”. Isso significa ser literalmente aristocrata, moralmente nobre, na forma como apresentamos a expressão democracia aristocrática.