O milagre do capeta

Para que uma pessoa seja considerada oficialmente santa pelo Vaticano, o beato deve fazer um milagre. Madre Paulina foi considerada santa por um milagre a ela atribuído que teria ocorrido em Imbituba, cidade catarinense. Quando uma cura é constatada, mas não explicada pela medicina, ela é chamada pelos católicos de milagre. A medicina a chama de cura sem explicação, segundo a lógica da medicina. E os católicos chamam isso de milagre.

No Vaticano, ao contrário do que alguns desavisados possam pensar, há muito ceticismo, pouca propensão ao reconhecimento de milagres. A igreja católica do Vaticano, ao contrário de alguns católicos credulões, não é de ficar vendo milagre onde muitos o veem. Conheci um padre espanhol que ajudava o então cardeal Ratzinger, hoje Bento 16, na congregação para a doutrina da fé, ex-santo ofício. Ele até ria da quantidade de aparições atribuídas a Nossa Senhora anualmente pelo mundo. “Coisa de gente enlouquecida”, dizia o simpático sacerdote carmelitano.

A igreja católica reconhece a existência de milagres, curas sem explicação, mas é bastante cauta nisso. Em Lourdes, na França, há uma comissão composta por médicos leigos que analisam os supostos milagres atribuídos a Nossa Senhora. O que seria um milagre, uma cura sem explicação? Uma intervenção direta de Deus. Para os católicos, Deus age sempre, pelas mãos dos bons médicos. Graça e trabalho humano caminham juntos. Milagre é uma ação direta em benefício de uma pessoa.

E o capeta, onde entra nesse contraponto? Ora, nos evangelhos há relatos sobre conflitos entre Jesus e o capeta, ou os capetas, espécie de quadrilha infernal. Em Roma, certa vez, entrevistei para uma revista mexicana, com a qual colaborei como jornalista freelance, um sacerdote exorcista. Padre Gabriele Amorth fazia exorcismos das 9 às 17 horas, diariamente, na diocese de Roma. Um homem bem humorado.

As entrevistas que fiz com políticos tiveram pouca audiência, mas a com o exorcista foi um sucesso. Outras revistas a compraram, até nos EUA. “O diabo não é ateu. Tem fé, muita fé”, dizia o sacerdote, explicando que não basta acreditar em Deus (“até o diabo acredita em Deus”), é preciso “confiar no amor de Deus, entregando-se a ele”.

Percebendo a falta de explicação científica para o fenômeno do menino baiano de dois anos, com mais de quarenta agulhas pelo corpo, lembrei do exorcista romano. Assim como existem milagres de Deus, benéficos para as pessoas, devem existir, também, milagres do capeta, maléficos para as pessoas, como introduzir quarenta agulhas no corpo de uma criancinha. Os católicos não acreditam no demônio, no sentido de prestar-lhe devoção. Sabem, também, que 99% dos fenômenos atribuídos ao capeta são apropriação indébita. Sobra 1% de espaço para os milagres do capeta, dentre eles, quem sabe, encher de agulhas o corpo de uma criancinha. Enquanto a ciência (medicina e polícia, investigação policial) não me livrar desta dúvida, vou ficar pensando no meu amigo Gabriele Amorth, o exorcista. Ao menos isso é mais racional do que crer na eca natalina do Papai Noel.