O legado de dona Ruth Cardoso

O Brasil despediu-se da doutora Ruth Cardoso. Mais do que lamentar a morte de uma celebridade, lamentamos a perda da referência daquela que foi primeira-dama na acepção plena da palavra.

Na história recente da república brasileira, ela foi a primeira mulher a ter luz própria ao lado de um marido presidente. Intelectual admirada e respeitada dentro e fora do país, Ruth Cardoso empreendeu um projeto insólito dentro do governo que por muitos foi acusado de neoliberal: combater as desigualdades sociais. Foi essa a bandeira do “Comunidade Solidária”.

Fugindo do esteriótipo do assistencialismo social que permeia o universo das “socialites” do poder, dona Ruth buscou construir uma proposta consistente e alternativa de combate à fome, à pobreza e à exclusão social. Incentivou programas sociais que buscassem não apenas sustentar os menos favorecidos, mas possibilitar a superação da condição miserável em que se encontra parcela significativa da população.

A militância da ex-primeira-dama levou-a ao ato corajoso de discordar da política econômica implementada pelo marido, o então presidente Fernando Henrique Cardoso. Atitude essa que serviu de exemplo para a sociedade brasileira entender o verdadeiro papel da mulher no contexto moderno. Ao não ser submissa, buscando articular-se política e ideologicamente, provou que a atuação feminina pode ir muito além das campanhas meramente beneficentes. Abominou qualquer possibilidade de favorecer-se do nepotismo e, apesar das recentes e infelizes denúncias produzidas por um dossiê nebuloso e questionável, jamais esteve envolvida em escândalos semelhantes ao ocorrido na LBA.

A influência política de dona Ruth foi decisiva para a implementação de programas sociais fundamentais à garantia da cidadania a milhões de brasileiros. Programas esses mantidos inclusive pelo atual governo, muito embora, hoje pautados por outras demandas e princípios duvidosos. Sempre discreta e elegante, porém, extremamente humilde, ela que detestava o epíteto de primeira-dama, conviveu com as comunidades buscando discutir com elas a superação de suas dificuldades. Sem viver à sombra do marido ilustre, buscou colocar em prática os fundamentos teóricos que suas obras pontuaram.

O legado de dona Ruth Cardoso será inesquecível. Um exemplo a ser seguido por todas as esposas dos atuais e futuros detentores de mandados eletivos no Brasil. Mas, acima de tudo, um modelo a ser imitado por toda mulher brasileira. Testemunho de que a intelectualidade, participação política e social e o sacrossanto papel de mãe e esposa são plenamente compatíveis à mulher moderna. Um incentivo a encorajar a presença feminina no processo eleitoral. Seja na condição de candidata propositiva, de esposa atuante ou de eleitora crítica, a participação feminina é profundamente decisiva para solidificar a democracia.