Memórias racionais de um ser esquecido

Maciel Brognoli
Autor

Tenho enfrentado grandes dificuldades na minha curta existência nesta terra abençoada por Deus. As constantes humilhações as quais sou submetido tornaram-me retraído e precavido, de modo que fico desconfiado se alguma alma singela me estende a mão, ou me oferece olhares piedosos enquanto perambulo sem destino pelas ruas da cidade. Perdi a fé na bondade, porque a maioria dos homens me despreza e se afasta de mim devido ao odor desagradável que exala de meu corpo sujo. O sofrimento me fez adotar triste expressão, olhar vazio e sem esperança. Conviver com as dificuldades já faz parte do meu cotidiano, mas quando o rigor do inverno se aproxima, fico ainda mais apreensivo e deprimido. Logo que as mãos gélidas pelas baixas temperaturas tocam e adormecem meu corpo, sei que a sorte que se desenha não será melhor que de invernadas anteriores.

Nada sei sobre meu pai. Mamãe foi atropelada por um automóvel e morreu quando eu era um bebê. Dos meus cinco irmãos eu tenho vagas lembranças, acho que estão como eu, jogados pelo mundo como se não houvesse razão para existirem. Não tenho lugar certo para morar. Numa noite durmo embaixo da ponte, em outras sob o aconchego das marquises que me protegem da chuva e do sereno impiedoso. Nos raros dias que consigo adormecer, sonho com um lugar limpo e decente onde divido espaço com outros em situação semelhante à minha. Mas os momentos de alegria são efêmeros, e sonhar com vida melhor é luxo reservado aos nobres. Eu vivo atormentado pelos pesadelos, e esses não escolhem condição fisiológica, os piores acontecem quando estou acordado.

Quase sempre sinto fome e procuro por migalhas jogadas nas lixeiras. Rasgo e espalho lixo para todos os lados, contribuo para que as ruas da cidade fiquem mais sujas, os bueiros entupidos com as sobras da minha desordem e de meu intestino frouxo. Às vezes, penso que tudo isso não aconteceria se eu não estivesse abandonado pelas ruas, se me dessem um lar decente e o mínimo de carinho que mereço receber. Não sei o que fiz de mal nesta vida para herdar tanta desgraça e infortúnio. Em minha consciência, pesa apenas o fato de eu ter urinado na plantação de alfaces de dona Custódia. Será que ela rogou alguma praga pra mim? Não. Ela nunca soube de minhas travessuras, e as colheitas regadas com minha ureia sempre renderam plantas com folhas largas e vistosas… Agora chega, cansei de contar as histórias de minha vida! Curioso para saber meu nome? Sinto decepcioná-lo, pois nem eu mesmo sei. Tratam-me por apelidos. Num dia atendo por “vira-lata”, noutros, por sarnento ou guaipeca. Sou apenas um miserável, sem lar, um esquecido cachorro de rua.