De quem não é a culpa

“Você não deve permanecer em sua casa, pois ela corre o risco de desabar”, explica o agente da defesa civil. “Não se preocupe. Se Deus quiser, ela não vai cair”, responde o morador, antes de ser retirado à força da casa que, depois, desabou mesmo com a lama do morro. Seria tal “otimismo” capaz de impedir sua casa de cair? Fé é uma coisa, roleta-russa da sorte-azar, outra. Interpretações banais de “otimismo”, “pensamento positivo” são supersticiosas, contrárias ao realismo. “Não seja pessimista. A sorte agora vai nos ajudar”. Argumentos supersticiosos não faltam quando queremos fugir da realidade. A fé em Deus (amor racional) é diferente da crença nos falsos deuses do fatalismo (sorte, fortuna).

O sociólogo Augusto Comte constatou que a humanidade explicou os seus problemas durante séculos recorrendo ao sobrenatural: enchentes seriam castigos dos deuses e pessoas babando estariam possuídas pelo demônio. As etapas da sua célebre Lei dos Três Estados são modos diferentes de explicar os problemas sociais. O terceiro estado, para Comte, é o estado positivo, ou científico: fenômenos reais, vigentes, dados, positivos (de onde positivismo) são explicados pela razão científica na etapa positivista da história da humanidade.

Augusto Comte ajudou a humanidade a se libertar de superstições, ajudou as religiões a se libertarem das superstições, abandonando deuses imaginários (sorte, fortuna, castigo) e permanecendo apenas com o Deus verdadeiro, revelado (a boa teologia também é positivista). Comte não era contra Deus, mas contra a irracionalidade. Ele criou a sociologia e quis libertar a humanidade das superstições, mas ainda continuamos, infelizmente, escravos delas: sorte, castigo, fortuna, destino (deuses sem alma). A única predestinação que existe é a da salvação, para todos, mesmo se nem todos a acolhem.

Nada nos autoriza a fugir da verdade efetiva da coisa (realidade) e nenhum sistema religioso racional que se preze (teologia) permite formulações explicativas inimigas da lógica racional. No âmbito do catolicismo, estuda-se filosofia antes da teologia porque a fé verdadeira é amiga – e não inimiga – da razão. Podem dizer tudo o que quiserem do papa Ratzinger, mas até seus inimigos reconhecem que se trata de um ser humano bem formado nos exercícios de cognição. Teologia séria não coincide com esses cursinhos brevíssimos inventados para despejar coletores profissionais no “mercado religioso”.

A religião da sorte, do castigo, da fortuna, do “otimismo” banal não é racional. É subumana. A religião cristã ama tanto a teologia quanto a engenharia civil.
A tragédia do norte (mortes, desalojados e desabrigados) não é culpa de Deus nem da ciência. Não é, também, culpa dos deuses: sorte ou azar. A culpa é nossa, pois sabemos o que não devemos fazer, mas, mesmo assim, o fazemos. A tragédia do norte não foi castigo de Deus, do destino ou da natureza. Não existe um ser autônomo, pensante, chamado “natureza”, ou “destino”. O mundo natural não pensa, apenas reage, funciona num esquema mecânico predeterminado ou condicionado por ações e reações. Uma bola movimenta-se porque a empurramos. E acabou. É só isso. A culpa, portanto, é nossa, de todos nós. Não é de Deus, da natureza ou da ciência. É nossa.

Para tornar a vida melhor, precisamos da ética e da engenharia (civil, química, de trânsito, etc.) e não de bobagens como sorte, azar, destino, castigo, fortuna – deuses cultuados pela estupidez. A sociedade precisa de amor, bom senso e ciência, muita ciência. Precisa de engenheiros humanistas e não da inércia de políticos anestesiados pela corrupção. Augusto Comte deve rir muito do baixo nível de nossas explicações.