Alice no País da Moda

Cumprimos o ciclo da vida: nascemos, crescemos, nos desenvolvemos e morremos. E, dentro desse processo, inventamos a cultura, que colore o período a que chamamos vida. Na cultura, desenvolvemos a moda, que desde a Idade Moderna vem sendo usada como artifício na construção da individualidade. Tem razão o sociólogo Guillaume Erner quando diz que a moda está relacionada com a vontade de nos tornarmos nós mesmos e com o desejo de entrarmos em relação com outro.

O cinema, assim como a televisão, atua como grande difusor de estilo. Há quem veja a novela ou assista ao filme-lançamento buscando referências para construir o seu eu. Os filmes, muitas vezes inspirados no passado, lançam uma moda atual. Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton, em cartaz, é um exemplo disso: foram lançadas com a temática de Alice camisetas, sandálias, esmaltes e até joias.

Esta versão da história, escrita originalmente por Lewis Carroll na Inglaterra do século 19, está a milhas de distância do universo lisérgico e provocativo por ele proposto. A jovem Alice, confusa com uma proposta de casamento arranjada por sua mãe, foge e acaba caindo em um buraco – a toca do coelho. Chegando no tal País das Maravilhas, vive diversas aventuras, algumas nem tão divertidas. Aqueles que não têm oportunidade de assistir ao filme em 3D podem sentir-se aliviados: o efeito tecnológico, ao invés de nos inserir no universo do filme, afasta-nos, lembrando-nos o tempo todo que estamos na realidade em uma poltrona de cinema observando um curioso efeito ótico.

Se o filme, em grande parte, decepciona o espectador – esperava-se do gênio-louco Tim Burton uma narrativa menos conservadora e previsível -, o figurino, que nos remete a uma viagem ao passado com um pé no futuro, vale a saída de casa. A indumentária de Alice está repleta de símbolos, como o vestido azul, cor já consagrada no desenho de 1951, da Disney.

O azul, em nossa cultura, figura como cor de menino e cai bem em uma personagem que questiona convenções morais: nesta Alice, encontramos uma espécie de rebelde. A menina, então com 19 anos, recusa-se a usar corset e meias, itens indispensáveis para as elegantes, especialmente para mocinhas “casadoiras” de então. Além disso, Alice nos surpreende ao vestir uma armadura, fazendo-se às vezes de uma guerreira: espera-se no enredo que este papel seja destinado a um cavaleiro. Nos momentos finais da história, Alice aparece usando uma gravata, acessório representativo do masculino e que simboliza suas conquistas e a negação da fragilidade feminina.

Na construção da identidade, a moda funciona como exercício de liberdade. E, assim como Alice, temos também a possibilidade de invertarmo-nos a cada dia, sem necessidade de seguir as regras de uma sociedade tradicional, pois já assumimos, com tranquilidade, nossa condição múltipla e imperfeita, nossa condição de humanos.