O jornalismo que estilhaça

Víctor Daltoé dos Anjos
Geógrafo pela UFSC
victordaltoe@gmail.com

O desaparecimento do jornalista saudita Jamal Khashoggi, e a suspeita da crueldade de seu assassinato a mando do governo saudita, tem causado suor frio nas costas de alguns líderes internacionais. O incidente escancarou o quanto a liberdade de imprensa e de opinião no mundo ainda não é um consenso e sofre com as lanças atiradas por todos os lados.

No último dia 2, Jamal Khashoggi, crítico severo do regime de governo da família Saud, a qual governa a atual Arábia Saudita desde 1902, foi ao consulado saudita em Istambul, na Turquia, para buscar alguns documentos para seu casamento. Sua noiva esperou na rua e Khashoggi, mas ele nunca mais saiu do prédio. O próprio governo da Turquia passou a acusar os sauditas de terem assassinado Khashoggi e cortado seu corpo em pedaços. O governo da Arábia Saudita, constrangido, confirmou que o jornalista morreu no consulado, mas em uma briga. Nada sobre o corpo.

A Arábia Saudita é governada por uma monarquia absolutista que segue uma linha muito radical do islamismo, o wahhabismo. Às mulheres é permitido pouca coisa. Só ganharam o direito de voto para alguns cargos políticos em 2016 e o de dirigir apenas em 2018. A homossexualidade, se comprovada, é punida com a pena de morte. O que mantém esse cadáver apodrecido em pé é o sangue negro do petróleo, já que a Arábia Saudita é um dos maiores produtores e exportadores desse produto no mundo, sendo um dos principais aliados dos Estados Unidos no Oriente Médio, além de ser um importante instrumento de contenção do Irã. Khashoggi era um crítico mordaz de tudo isso.

Historicamente, e na América Latina com muita frequência, o jornalismo é um dos mais importantes espaços para se desvencilhar do poder e apontar seus erros, quando muitas vezes intelectuais, artistas e outros se deixam levar pela corrente. O jornalismo é um dos principais instrumentos para ancorar os pés e nadar contra a maré forte da ignorância inflada pelo poder. E, ao redor do mundo cresce a crista da onda que trata a grande imprensa como mentirosa e corrupta, sempre com o intuito de atacar a sua liberdade, a sua pena livre para a crítica a qualquer poder. Os que não se envergonham mais de atacar a imprensa são os que não sabem que nada está a salvo de crítica.

A missão jornalística é desafiar o poder. Olhar na face dos governantes, seja qual for a cor da sua bandeira, e lhe questionar o que está por trás de suas ações, perguntar como farão o que prometem, principalmente quando tudo prometem mudar sem dizer muito como fazer. A missão do jornalista é voltar-se à face do governante, ou candidato, e lhe questionar de forma serena, grave e corajosa: o que se esconde por trás dos seus olhos, candidato? Quais são seus segredos? Khashoggi pagou com sua vida por essas perguntas perigosas que podem estilhaçar os maiores mitos políticos e fazer suas imagens moralistas em pedaços.