Porra, religião, machismo, política, lei

Na transição do estado de natureza para as diversas culturas, que ocorrências teriam conduzido a que se valorassem tão distintamente o que seriam, para o macho e para a fêmea, meramente tarefas por adequação às circunstâncias?
A biologia estabelecia (e estabelece) diferenças peremptórias entre machos e fêmeas. O ambiente natural fazia imposições aos humanos, que se adaptavam ou não sobreviviam. Não havia muita escolha. As distinções entre os sexos pediam aos sexos funções distintas. As funções distintas selecionavam e afirmavam condições machas e condições fêmeas. Machos e fêmeas selecionados (sobreviventes por adequação) reproduziam.
Isso é Darwin, seleção natural. Com a aquisição de cultura (a anatomia cerebral do primata humano desenvolveu-se em decorrência de culturas rudimentares assimiladas e transmitidas), aos poucos foram-se formando valores. Os primeiros (proto)valores não eram morais ou jurídicos, mas interdições, ou tabus. Eram regras proibitivas gerais para os agrupamentos, não se dirigindo, supostamente, com particularidades, para um ou outro sexo.
Daí, não se sabe exatamente como nem quando, surge a precedência doméstica e social do homem sobre a mulher. Adviria meramente da força física? Derivaria da fragilidade da mulher, sempre grávida ou amamentando? Eu suponho que a principal causa é a continuação das vantagens competitivas extraídas das condições corporais. Num tempo e situação em que o mais forte se impunha ao mais fraco, a vantagem era do masculino.
O homem era mais forte, mandava, só. Não acredito em determinações genéticas para mandar. Descreio em uma conspiração cultural de origem. É claro que raciocinando evolutivamente as coisas não são separáveis. Essa condição advinda da força física assentou-se como proeminência nas relações sociais. No princípio, talvez, impensadamente, no correr dos tempos, sem dúvida, com elaboração minudente, vigilância e punição.
Então os homens, despudoradamente, fizeram o mundo ao gosto da sua imagem e ao sabor dos seus interesses. Primeiro, dispuseram das mulheres para aproximação ou estabelecimento de relações entre grupos primitivos. À sua revelia, as mulheres foram convertidas em valor de escambo: entre tribos primitivas, os homens trocavam-nas (sem formação de laços familiares), seja por outras mulheres, seja por comida, seja por gado.
Diferentes culturas, à medida que se sofisticaram, atribuíram às mulheres distintas atribuições, mais ou menos prestigiosas. As culturas da Tradição Ocidental (semita, grega, romana) nunca as estimaram muito bem. A cultura grega exerceu ascendência sobre a romana, mas a cultura romana não é a grega. O patriarcado que marcou o direito ocidental foi o romano. O patriarca dispunha da mulher, da sua vida e da sua morte, inclusive.
Quando no século quarto, sob o império de Constantino (havido pelos católicos como o seu 13º apóstolo), fundiram-se as instituições romanas e as crenças católicas, mancomunaram-se lei (romana) com ideologia (cristã). Institui-se o machismo sob os auspícios da legalidade e das bênçãos do deus cristão: os homens, poderosos senhores da vida pública; as mulheres, submissas ajudadoras (comando bíblico) da vida doméstica.
A Revolução Francesa, o Liberalismo norte-americano, o código civil de Napoleão: o Direito. Os fatos do mundo, as condições materiais do pós-Segunda Guerra, as lutas feministas. O Direito foi assimilando mudanças. Mas o Jurídico ainda era dos homens, logo era deles a interpretação das leis. Homens continuaram matando mulheres. Se já havia veto previsto, não havia o assentamento social da vedação. Honra, era a alegação exculpatória.
Em nome da honra homens matavam impunemente mulheres até os fins do século passado. E ainda se alega tal razão. Cola muito menos, é verdade, mas circula, assim como circula “bons costumes”, “recatamento”, “do lar”. O arrefecimento da mentalidade religiosa afeta o machismo, mas não o bastante. Os espaços sociais conquistados pelas mulheres afeta a vida doméstica, lugar onde se realizam as formalidades de submissão.
As mulheres, contudo, já detêm condições econômicas de vida livre. Muitas reagem. Os homens reagem à reação. O machismo não tolera insubordinação, requer os costumes, pede as práticas da tradição. O Direito atropela o machismo. Fá-lo a ponto de prever o feminicídio. Nossos costumes, entretanto, não o acompanham. Tanto assim é que ainda nos destacamos no mundo como matadores de mulheres.
Agora, a notícia de um sujeito que, surpreendendo uma mulher, jorra-lhe porra sobre o corpo. Um juiz tem sua decisão sobre o caso fartamente criticada. Os críticos não compreenderam que há uma lei a ser cumprida. O machismo é anterior à decisão do magistrado. Esse modo de pensar é pouco rechaçado pela legislação penal. Ainda que venha sendo coibido, a base ideológica da norma repressiva reflete os costumes de lá de 1940.
Houve uma grita geral requerendo tipificação do ato como estupro. Ora, para que se caracterize legalmente esse crime, tem que haver constrangimento, seja, o autor teria que ter coagido a vítima de alguma maneira. Não se deve confundir o vocábulo constrangimento de uso corrente (forte desagrado de alguém por algo que não pode evitar), com constrangimento núcleo do tipo penal: uso de violência ou grave ameaça conta a vítima.
Sem dúvida o acontecido nos envergonha a todos. Não se deve pedir que o juiz atropele a Lei, tomando medidas para aplacar o furor social. Isso seria cair em punitivismo penal, um horror anticivilização. O ato do “ejaculador” configura-se como importunação ofensiva ao pudor, lamentavelmente uma mera contravenção, apenada com multa. Ora, aplicada a pena, o juiz não teria como manter o indiciado preso.
Mais, para elucidar: não era uma faculdade do juiz manter a prisão. Se o fizesse, cometeria abuso de autoridade. Quem se prestar a ler a decisão verá que todos os aspectos relativos foram bem considerados. A questão é grave, certamente. Há risco a terceiros no comportamento do acusado. O Estado-juiz não abdicou de suas obrigações, previstas pelo Estado-legislador. O Estado-legislador é o povo que escolhe o parlamentar.
Não gostamos de nos meter no nosso “destino” legal. Talvez não entendamos que as leis, em última instância, são consequência das eleições. O grito antimachismo, pois, deve consubstanciar-se em campanha eleitoral. Os conteúdos ideológicos da lei que o juiz deve obedecer brotam da mentalidade do parlamentar que elegemos. Talvez acalantemos a consciência destilando desgosto por redes sociais. Bem, não basta. Há que fazer política.
Nossa tradição patriarcal e nossa crença abraâmica sustentam a mentalidade de boa parte dos eleitores. Nosso asco por política neutraliza um tanto de críticos mais esclarecidos, mas que se recusam a atuar. O mundo real decorre de relações de poder concretas. Nossos parlamentos transluzem machismo e religião. As subjacências de costumes antigos operam pela sua persistência. Vamos à luta na próxima eleição?

(Coautoria com Karine Gomes Vieira)