INVEJAS

Você já se apanhou desejando algo ou alguém? Esse algo ou alguém vagava pelo mundo, sem dono ou sem ninguém? Porque, se tinha dono ou envolvimento, você irá para o inferno, por prática de um pecado capital. Na tradição religiosa, isso é inveja, e é considerado pecado, porque a pessoa está ignorando suas próprias bênçãos (o status que a divindade lhe deu) e priorizando as do alheio. Para o cânone cristão, o invejoso abandona o seu crescimento espiritual, voltando sua aplicação para fora de si.

O Houaiss define inveja assim: “1. desgosto provocado pela felicidade ou prosperidade alheia; 2. desejo irrefreável de possuir ou gozar o que é de outrem.” O Dicionário Técnico de Psicologia (Cabral, A e Nick, E), Cultrix, traz o seguinte conceito: “Sentimento inconfortável que é estimulado pela consciência de que outra pessoa tem o que desejamos, mas que nos falta.” Eu diria que essa é uma forma doentia de inveja. Essas definições desdobram-se da tradição religiosa. Inveja igual a pecado.

A Wikipédia é mais abrangente, mas fica na linha da inveja como coisa feia: “Inveja ou invídia é um sentimento de aversão ao que o outro tem e a própria pessoa não tem. Este sentimento gera o desejo de ter exatamente o que a outra pessoa tem […] e de tirar essa mesma coisa da pessoa, fazendo com que ela fique sem. É um sentimento gerado pelo egocentrismo e pela soberba de querer ser maior e melhor que todos, não podendo suportar que outrem seja melhor.

Os indivíduos disputam poder, riquezas e status. Aqueles que possuem tais atributos sofrem do sentimento da inveja alheia dos que não os possuem, que almejariam ter tais atributos. […] Numa outra perspectiva, a inveja também pode ser definida como uma vontade frustrada de possuir os atributos ou qualidades de um outro ser, pois aquele que deseja tais virtudes é incapaz de alcançá-las, seja pela incompetência e limitação física, seja pela intelectual” (com edição).

Desejo oferecer uma compreensão alternativa a essa tradição. De fato, a inveja pode ser uma coisa perniciosa, mas não necessariamente. Distingo três tipos de inveja: 1. a típica: quero algo que o outro tem e envido meios de me apropriar desse algo; 2. a maléfica: quero, sem chance, algo que o outro tem, então desejo que o outro deixe de ter esse algo; 3. a cobiça: eu quero, também, algo que o outro tem, mas não quero precisamente o algo do outro (conceito de Leandro Karnal, que diferencia cobiça de inveja https://bit.ly/2Ind0gO).

Nas duas primeiras eu me entristeço com a felicidade do outro. Na segunda, particularmente, eu desejo que o outro se dane: tento diminuir a glória do próximo, “exultando pela sua adversidade”; se não obtendo meu propósito, sofro “aflição pela sua prosperidade”. “Sendo a inveja uma tristeza pela glória do outro, considerada como um certo mal, segue-se que, movido pela inveja, tenda a fazer coisas contra a ordem moral para atingir o próximo e, assim, a inveja é vício capital” (Sobre o Ensino, Tomás de Aquino).

Contudo, quanto à cobiça, ela tem movido a humanidade. Vemos as coisas ou as qualidades próprias de outra pessoa e, muitas vezes, as posses ou os predicados que vimos se convertem em nosso objeto de desejo, ou “sonho de consumo”. Isso ocorreu em todos os tempos e acontece em todos os lugares, em todos os aspectos, em todos os “níveis” da condição humana. Pois não é isso, exatamente, que nos leva ao telefone novo, ao carro atual, à busca do corpo “sarado” ou da condição intelectual destacada?

Os desiludidos com a época presente associam qualquer inveja, a cobiça inclusive, a esse “capitalismo selvagem que está aí”. Bulhufas! Disputar poder e riqueza, almejar a posição dos bem situados, buscar as coisas boas do mundo, isso tudo vem de tempos imemoriais. Cobiçar, mesmo invejar, é comparar, é querer mais, é querer melhor. Todos – talvez não contra alguém, mas a nosso favor – já cobiçamos (ou invejamos). Quanto a mim, acrescento: prezo que muitos me invejem; escolho poucos para invejar.