Sexo e gênero: poder dizer-se como se sente

Buscamos o não-agito da noite. Na praça, somos fregueses de uma estação de exercícios. Outros corpos frequentam o lugar. Chama-nos a atenção meia dúzia de pessoas ao violão e canto piano. Não muitos outros corpos circulam.

Sempre há haitianos, poucos, mas costumam passar por lá. Comentamos seus sorrisos: branco vivo no preto retinto; seus bonsoir. Há senhoras e seus cachorros, levados a passear. E, vez por outra, há travestis.

Na última ida à praça, havia um corpo alto, forte, bonito. Os ombros se destacavam pelo largo que eram, o que dizia homem. O mais dele se dizia mulher. Os cabelos, o andar construído como feminino, as vestes feitas de delicadeza.

O corpo nascido macho não venceu o desejo de ser fêmea. Estava de vestido, desses airosos que revelam sensualidade. O detalhe das etiquetas de feminilidade estava numa alça caída. Era a minúcia provocante que anunciava o feminino.

Sua carta de identidade legal diria sexo masculino; seria difícil mudar a condição de nascimento e amarração formal. O Supremo Tribunal Federal, contudo, nesse dia, ressignificara a relação do ser de um sexo com o sentir-se de outro.

A natureza selecionou os humanos como corpos machos ou fêmeas. Os encontros com o mundo inscrevem nos corpos uma história. As histórias pessoais produzem na biologia uma condição de gênero: sentir-se homem ou mulher.

A condição sexual, entretanto, não tem sido a expressão de vontade dos corpos. A circunstância sexual sempre foi crivada pelo Estado, pela religião, pela medicina, pela psicologia. A condição sexual tem sido uma relação de poder.

O ideário liberal, na construção e garantias de franquias individuais, tem recebido, no Brasil, consubstanciação em sua forma nas decisões lúcidas do STF. O Supremo, vencendo costumes anacrônicos, tem empoderado o indivíduo.

Indivíduos promovem-se e se dignificam no que lhes distingue. Democracias que vão além das formalidades e se realizam no exercício da vida reconhecem peculiaridades. Peculiaridades dignificam o indivíduo diante da multidão.

A ministra Cármen Lúcia, presidente da Corte, arrematou os votos, mas estabeleceu balizas com o resgate de palavras de grande força moral: “Não se respeita a honra de alguém se não se respeita a imagem que [esse alguém] tem”.

Somos iguais, sim, na nossa dignidade, mas temos o direito de ser diferentes em nossa pluralidade e nossa forma de ser”. Honrar a individualidade é deferir apreço por escolhas, por mais estranhas que elas se nos pareçam.

O exercício das diferenças na forma de ser é uma questão de dignidade. Ninguém exercitará sua dignidade constitucional se não exercitar sua identidade. “A identidade de gênero não se prova”, lembrou o ministro Luís Roberto Barroso.

Para o ministro Marco Aurélio Mello, “é inaceitável no estado democrático de direito inviabilizar a alguém a escolha do caminho a ser percorrido, obstando-lhe o protagonismo pleno e feliz da própria jornada”.

“Realmente, não há espaço para dúvida quanto à importância do reconhecimento para a autoestima, para a autoconfiança, para a autorrealização e para a felicidade”, arguiu Ricardo Lewandowski, qualificando a imagem que se pode ter de si.

O ministro Luiz Fux destacou a “importância de adequar a identidade de gênero à busca pela felicidade”. A felicidade, esse desiderato humano ao qual a humanidade deve o cuidado de oferecer o menos que puder de empecilhos.

“O julgamento é um divisor de águas a ser celebrado. Até a ocorrência dele, víamos uma peregrinação burocrática de pessoas que desejam ver reconhecidos sua identidade de gênero e registro cível de sexo e nome.

[Agora] poderão exigir do Estado, sem preconceito ou violência institucional, o reconhecimento pleno da sua busca à felicidade”, resume Carlos Paz, defensor público-geral da União (Letícia Casado, FSP, 02mar18, editado).

O rol de estorvos que se opunha à autodeterminação de gênero – licença judicial, atestado médico e psicológico, intervenção cirúrgica –, essa ambulação indigna se vai e o indivíduo está livre para dizer-se legalmente como se sente.

Na praça, o corpo decidido por ser mulher. Levar-lhe a notícia do STF, informar-lhe da autorização legal. Bobagem nossa: o corpo já se autorizara. Tudo nele já era feminino, seus desejos antecipados ao Direito constituíram a decisão judicial.