Transtorno faz com que pessoas não consigam parar de se cutucar

Cutucar a pele de maneira repetitiva a ponto de provocar lesões caracteriza um tipo específico de distúrbio psiquiátrico chamado dermatotilexomania ou transtorno de escoriação.

A classificação desse problema no Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) é recente, de 2013. Esse é um dos motivos que fazem com que o transtorno de escoriação ainda seja pouco compreendido, até mesmo entre profissionais da saúde.

De acordo com o DSM-5, “os locais mais comumente beliscados são rosto, braços e mãos, porém, muitos indivíduos beliscam múltiplas partes do corpo. Podem beliscar pele saudável, irregularidades menores na pele, lesões como espinhas ou calosidades ou cascas de lesões anteriores. A maioria das pessoas belisca com as unhas, embora muitas usem pinças, alfinetes ou outros objetos. Além de beliscar a pele, pode haver comportamentos de esfregar, espremer e morder.”

Autor de um estudo de mestrado sobre o tema, o psicólogo Daniel Carr Ribeiro Gulassa, do IPq (Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP), explica que alguns fatores são usados para fechar o diagnóstico do transtorno de escoriação.

“A pessoa precisa cutucar a pele resultando em lesões clinicamente verificáveis; precisa ter tentado cessar ou diminuir o comportamento sem sucesso; precisa gerar sofrimento significativo; e prejudicar alguma área social da vida dela. Além disso, o ato de se cutucar não pode ser justificado por problemas dermatológicos, uso de remédios ou drogas e também não pode ser explicado por outro transtorno mental.”

Segundo o psicólogo, um estudo feito em 2018 mostra que 3,4% da população brasileira, ou seja, cerca de 7 milhões de pessoas, sofrem com esse tipo de transtorno. É comum que elas apresentem também ansiedade ou depressão.

O transtorno de escoriação pode surgir acompanhado de outros comportamentos repetitivos focados no corpo — como a tricotilomania (arrancar pelos e cabelos) e a onicofagia (roer unhas). Os hábitos de morder lábios e bochechas, embora não classificados como distúrbios específicos, também podem estar presentes.

Alguns pacientes nem sequer percebem que se cutucam, que é a forma de manifestação automática do distúrbio. Por outro lado, existem pessoas que tiram um momento do dia para se beliscar (tipo focado). Há também o tipo misto, que varia entre consciente e inconsciente das lesões autoinduzidas.

Parentes e amigos que percebem esse comportamento podem ajudar. No entanto, repreender tende a ser pior em muitos casos, explica Gulassa.

“A própria pessoa sofre por não entender por que ela faz isso. […] As pessoas chegam ao consultório, em geral, com muita raiva e frustração de serem chamadas atenção. Ao longo do processo terapêutico a gente vai trabalhando que as pessoas que chamam atenção são as mais preocupadas com elas, mas a forma como chamam atenção é de uma maneira que não favorece a ajuda.”

Fundo emocional

Em comum, os pacientes portadores desse tipo de distúrbio têm dificuldades em lidar com as emoções, explica o psicólogo do IPq.

“São pessoas de maneira geral bastante perfeccionistas, com expectativa de produtividade muito alta, não se permitem muito descansar e têm dificuldade em planejar e executar tarefas. Esses ingredientes são um convite à frustração, porque elas costumam ter um perfil controlador.”

Gulassa acrescenta que o hábito de se cutucar é, mesmo sendo inconsciente, uma maneira de a pessoa sentir “como se estivesse fazendo alguma coisa até mesmo quando está descansando”.

“Ela encontra uma saliência na pele, isso incomoda. Quando ela tira aquilo, é como se ela tivesse resolvido um problema. […] Todo mundo faz vez ou outra isso, mas nesses casos, ocupa um longo período do dia. Tem gente chega a passar a noite se cutucando.”

O psicólogo chegou a resultados positivos ao desenvolver terapia de grupo com pacientes com transtorno de escoriação. Ele avalia que a possibilidade de falar sobre o problema e ouvir pessoas que vivem uma situação semelhante é algo muito significativo durante o tratamento.

Apesar disso, a terapia individual também pode fazer parte do tratamento. Em alguns casos, o uso de medicamentos é associado à psicoterapia.

A principal recomendação de Gulassa é que pessoas com o transtorno de escoriação não façam tratamentos dermatológicos agressivos na expectativa de melhorar as lesões na pele. O fundamental, segundo ele, é antes de qualquer coisa buscar ajuda psicológica.

“A cutucação é uma manifestação de que algo não está sendo percebido, tampouco sendo saudavelmente cuidado na vida daquela pessoa. Um exercício constante de parar e prestar atenção em como você está se sentindo é um instrumento muito importante para todos nós. Você tem uma informação que pode te explicar o que você precisa.”