‘Quero vê-las separadas, mas juntas de novo’, afirma mãe de siamesas

Abrir os olhos, respirar sem ajuda de aparelhos, enxergar sob uma nova perspectiva e de um novo ângulo. Foram 10 meses unidas pelo crânio, por conta de uma anomalia causada por alteração embrionária. Há oito dias, 50 profissionais conseguiram, após uma cirurgia de cerca de 20 horas, separar as garotinhas brasilienses Lis e Mel. Junto com elas, renasceram também uma mãe, um pai e uma família inteira.

O passo nos corredores do Hospital da Criança é apressado, mas nada que tire o sorriso do rosto de Camilla Neves, 25 anos. Ela é parada algumas vezes pelo caminho e atende a todos que a abordam. Inicialmente, a jovem transparece timidez. Mas basta algum tempo frente a frente com a Camilla para perceber que ela é do tipo que gosta de olhar nos olhos. 

No último ano, ela se viu obrigada a amadurecer rapidamente para cuidar das duas filhas. Vivia uma rotina normal de estudante até junho de 2018. Acordava pouco depois das 6h. De Ceilândia, pegava diariamente o metrô e um ônibus para chegar à Universidade de Brasília (UnB), onde cursava o sexto semestre de farmácia. De lá, seguia para o trabalho na Secretaria de Saúde. Aos fins de semana, gostava de sair com os amigos, ir ao cinema e assistir a seriados. 

Com frequência, a mãe das meninas é elogiada pela força e pela coragem com que enfrentou a condição das filhas. A tranquilidade de Camilla é destacada pela equipe médica, mas ela dispensa o título de valente e de corajosa. Enfrentou um périplo doloroso com serenidade. “Qualquer mãe faria o mesmo”, diz.

A estudante viveu uma montanha-russa de emoções desde que descobriu que seria mãe de gêmeas siamesas. Primeiro, veio o desespero. Em seguida, o medo e, por fim, a aceitação. Com confiança, encarou a espera pela cirurgia. Aos 25 anos, enfrentou a realidade de suas filhas nascerem com uma condição rara no mundo (uma gestação em 2,5 milhões), mas desenvolveu uma capacidade de resiliência admirável e conseguiu dar novo significado à chegada dos seus bebês. 

Camilla não é muito diferente de outras mães: no celular, só há fotos de Mel e de Lis. Ela mostra orgulhosa as imagens das pequenas. Em um dos vídeos, Mel, mais agitada, se apoia na irmã para ficar de pé. Como eram unidas pela cabeça, elas tinham uma base triangular, a mais perfeita na geometria, e, por causa disso, desenvolveram alguns movimentos precocemente.  

A gravidez das gêmeas não foi planejada. E o primeiro susto foi saber que Camilla e Rodrigo, que namoram desde 2014, esperavam gêmeos. Assustados, mas felizes, cinco semanas depois, descobriram que essa não seria uma maternidade comum.

Era 27 de dezembro de 2018 e a semana entre o Natal e o ano novo se transformou em um pesadelo. Após um sangramento, um exame de ecografia revelou duas coisas: a placenta estava descolada e as meninas estavam unidas pela cabeça. Antes mesmo do diagnóstico, Camilla sentia que algo não estava bem.  “A médica demorou para dizer o que estava acontecendo, eu já estava achando estranho, até que me perguntou se eu sabia o que eram gêmeos siameses. Naquela hora, foi como se o meu corpo tivesse ficado e minha alma, saído. Essa foi a sensação. Eu só queria correr daquela sala depois da notícia”. A jovem aperta os olhos relembrando o momento em que teve a notícia.

A descoberta veio seguida da informação de que Camilla poderia interromper a gravidez legalmente pelo SUS. Em casos como o dela, a legislação brasileira permite o aborto. Ela teria uma semana, a partir daquele dia, para amadurecer a ideia. “Tive medo, foi difícil, me vi pensando em que tipo de qualidade de vida elas teriam ao nascer assim, mas eu sabia que não ia aguentar o peso de um aborto. Eu não queria desistir delas, quis lutar por elas”.

Decisão custosa que foi ficando mais leve à medida que Camilla se sentia abraçada pelo companheiro, pela família e pelos poucos amigos informados sobre o problema. 

Um dia, angustiada, foi à igreja e o conselho de um padre mudou tudo. “Ele disse uma coisa da qual nunca vou me esquecer: Que Deus cuidava de mim e sabia o que era melhor”.  A partir desse momento, Camilla se sentiu fortalecida. “Eu não sabia o que esperar e não queria criar expectativas. A partir do momento em que entreguei para Deus, tudo começou a acontecer. Surgiram os médicos do HMIB, o doutor Benício e toda a equipe. Não me faltou nada”.

Parto

Camilla foi levada ao centro cirúrgico do Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB) para o parto, por volta das 15h de 1º de junho de 2018. Na ocasião, mais de 50 pessoas estavam na sala, acompanhando o nascimento raro das siamesas. Por causa da posição das meninas, o corte da cesariana foi feito na vertical, logo abaixo do umbigo. Camilla, que estava tranquila até esse momento, sentiu medo. Por causa do peso das meninas, existiam inúmeros riscos, inclusive a possibilidade de perder o útero. 

“Na hora do nascimento, às 16h02, a única coisa que conseguiu ouvir foi um choro fraco”, relembra. As meninas foram direto para uma sala ao lado do centro cirúrgico e, só depois de aproximadamente quatro horas, Camilla teve o primeiro contato com as filhas: apenas a visão dos quatro pezinhos. Na noite de sábado, 24 horas depois, ela conseguiu ver o rosto das filhas pela primeira vez. “Foi a coisa mais emocionante ver o quanto elas eram lindas”.

As meninas ficaram mais de um mês internadas, mas o bom desenvolvimento permitiu que elas fossem para casa em 12 de julho de 2018. Para evitar olhares curiosos, a família evitou sair com as crianças de casa durante quase sete meses. Quando ficaram um pouco maiores, elas passaram a passear, mas apenas na casa de parentes. “Colocar o pano na cabeça delas para evitar os olhares maldosos matava o meu coração. Tinha dia que estava tão quente, e elas são bem calorentas, então imagina andar com um pano na cabeça”.

Os últimos momentos antes da cirurgia, que aconteceu em 27 de abril, no Hospital da Criança, foram de grande emoção. Antes de entregar as meninas no centro cirúrgico, Camilla e Rodrigo conversaram com elas. “Chorando, eu disse: ‘filhas, daqui a pouco vocês vão dormir por um longo tempo, quando vocês acordarem, sua irmã vai estar lá, mas não será mais assim tão pertinho. Fiquem tranquilas, a mamãe e o papai vão sempre estar ao lado de vocês’”, conta, emocionada. 

Uma semana após a cirurgia inédita no DF, as crianças ainda estão na UTI. Lis acordou antes do esperado, se mexeu, comeu a primeira papinha e até conseguiu se apoiar nos braços e nos joelhos com o auxílio de um suporte. Mel não respira mais com a ajuda de aparelhos e evolui muito bem. De agora em diante, o futuro será independente. “Lis é só Lis e Mel é só Mel”, comentou o neurocirurgião Benício Oton, que comandou a operação. Elas ainda não têm camas separadas, mas o desejo é de que cada uma desfrute de seu próprio espaço. Depois da cirurgia, os sonhos são simples. Colocar as meninas no carrinho e passear — coisa que toda mãe faz com seu bebê, mas que Lis e Mel só poderão experimentar a partir de agora.

Confiança 

Nos corredores do HCB, as mães são maioria, com olhares atentos aos meninos e às meninas. Tranquila, a pequena Aylla Yasmin da Silva, de 10 meses, mamava no peito de Regiane da Silva, 29, antes da consulta com um hematologista. Desde o nascimento da garotinha, no Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB), as duas estão em consultórios médicos com frequência. Aylla tem síndrome de down e, logo após o parto, teve problemas respiratórios e passou dois meses na unidade de terapia intensiva (UTI) do Hospital Regional de Taguatinga (HRT).

Lá, a Regiane foi informada de que a recém-nascida tinha leucemia transitória, condição enfrentada por 10% dos nascidos com down. “Quando me disseram, eu nem sabia como reagir. É algo que não dá para entender, a gente se pergunta o que fez para isso acontecer”, recorda. Ela conta que este é o primeiro caso da família e tem sido cuidadosamente avaliado.

A menina hoje está livre da leucemia, mas os médicos alertaram para a possibilidade de que a doença reapareça. “Estamos sempre em hospitais. Tem cardiologista no Hran, pediatra no HRT e as consultas e exames no HCB”, descreve. Elas moram no Entorno do DF, no município do Novo Gama, e fazem todo o deslocamento de ônibus. “Não é fácil, mas os médicos são bons e explicam tudo direitinho, o que deixa a gente mais tranquila”.

A supervisora de Psicologia do hospital, Marla Ribeiro, conta que a preocupação é com as crianças e também com os pais. Cada demanda é avaliada individualmente. “Quando a gente fala em criança e adolescente, é impossível separar a vivência do familiar. Nosso foco, muitas vezes, é até mais nos responsáveis do que nos próprios pacientes, como na situação das meninas (gêmeas)”, afirma. “Se tenho uma criança cujos pais estão extremamente ansiosos, o paciente também vai ficar. O jeito que o responsável lida com a doença faz toda a diferença para o tratamento da criança”, garante.