‘Não é doação nem caridade, é maternidade’

Liliane Dias
Laguna

O que inspira um casal ou mesmo uma pessoa a levar um indivíduo totalmente desconhecido para dentro de seu lar, da sua intimidade? Muitos, por serem impossibilitados de gerar um filho, sentem-se chamados a exercer a paternidade.

Outros até podem conceber um filho e o fazem, mas mesmo assim, resgatam um ‘serzinho’ e o trazem para o aconchego de seu lar. Mas, ainda há um terceiro caso, os que podem gerar, porém, recebem um chamado apenas para a adoção, não dando importância para a sua condição de poder gerar, seu chamado está além de tudo isso.

Um desses casos atípicos é o da professora e diretora escolar, Juliana Fagundes de Carvalho Luz, de 38 anos, e do funcionário público, Marcus Luz Fernandes, de 37 anos. O casal, que reside em Laguna, optou pela adoção tardia em dose dupla.

Juliana conta que desde muito jovem sempre pensou na adoção, mas de forma descomprometida, do mesmo modo em que idealizava o casamento e a constituição de família. “Com o passar do tempo amadureci e pensei verdadeiramente que tinha chegado a hora. Meu marido (na época noivo) e eu, fomos ao médico e pensávamos seriamente em engravidar. Conversávamos muito sobre adoção também, no entanto, não tínhamos uma decisão tomada”, relembra.

Em 2017, resolveram constituir família. Foi então que, como diretora de escolar, Juliana teve a oportunidade de conhecer uma das meninas que seria, posteriormente sua filha. Ao término da aula, no início do ano letivo, os responsáveis de alguns alunos se atrasavam para buscá-los e alguns desses estudantes foram encaminhados para a sala da diretora.

“Sabia que teríamos uma aluna em situação de acolhimento, mas não sabia ainda identificar nos primeiros dias quem era. Foi quando uma professora levou uma menininha na minha sala e disse que era uma ‘Julianinha’, achei graça e perguntei o motivo. A professora disse que ela falava como eu, escrevia como eu e era muito geniosa”, comenta.

A docente lembra que achou graça e observou a pequena um pouco mais. “De fato a menina tinha trejeitos e brincadeiras que se associavam a mim, até que algumas crianças questionaram o que ela era minha, pois estranhavam a semelhança”, pontua Juliana.

Foi quando a docente entendeu o propósito de tudo. “Amadureci a ideia, passei noites sem dormir calada, buscando entender o que estava ocorrendo. Fui ao fórum me informar sobre a situação do acolhimento, já pensando em falar com meu noivo sobre a ideia”, explica.

Juliana soube também, que a menina provavelmente teria a sua destituição e iria para o sistema de adoção. “No mesmo momento soube que ela tinha uma irmã, que não seriam separadas e isso me fortaleceu ainda mais, pois não estariam jamais sozinhas”, reforça a diretora.

Ao chegar em casa, ela conversou com o seu noivo. Eles conversaram, estudaram as possibilidades, pesquisaram muito e se impressionaram com os índices de crianças que são devolvidas, mas isso não os intimidou. “Uma realidade assustadora, que apesar de parecer cruel é muito real”, relata.

Após a inscrição o casal passou pelo curso psicólogo, assistente social e mesmo sabendo que não havia certeza de que as duas seriam deles, um sentimento tomava conta de Juliana e a fazia acreditar. “E de acordo com o sistema nacional, no fim de tudo, tivemos a feliz notícia. Éramos os primeiros da comarca com o perfil das irmãs mais velhas”, comemora.

Hoje, após duas semanas de adaptação e oito meses de guarda estão com a adoção concretizada desde dezembro de 2018. As meninas têm 12 e 10 anos.

 

Adoção tardia

Mesmo participando do grupo de apoio a adoção, vários foram os enfrentamentos. Juliana abre um parêntese para falar do pouco apoio que a instituição recebe do sistema público, pois apesar de ser um órgão autônomo, é de conhecimento a dificuldade enfrentada por todos que atuam em grupos, associações e conselhos.

Apesar de todo o empenho e demonstração de interesse, as meninas permaneceram mais um ano no abrigo. “Ao todo foram quase 4 anos morando no abrigo institucional, que apesar de não falarmos muito nisso não é um ambiente familiar, não é um lar, é um abrigo com corredores e roupas de uso coletivo”, pontua Juliana.

Ela explica que o trato não é baseado no amor e no cuidado. “Às vezes é frio, sem vínculos verdadeiros e ainda com profissionais despreparados para o acolhimento. O que compromete muito o desenvolvimento social de uma criança e de um jovem”, ressalta a professora.

O que fez com que a sua ‘dor do parto’ durasse meses. “Foram muitos dias de choro, medo, me vi uma mulher frágil. Poucas pessoas do sistema acolhem as mulheres nessa situação, os casais, parece tudo muito frio e sem carinho. Esperamos nossos filhos sem saber que não levará apenas 9 meses”, emociona-se.

Juliana conta que se não bastasse toda a angustia da espera, algumas pessoas do próprio abrigo quase a fizeram desistir. “Era uma pessoa com pouca informação na época, escutei muitos discursos desanimadores. Inclusive, de pessoas que seriam responsáveis pelos acolhimentos. Uma força que não sei precisar de onde me fez continuar, as expectativas eram enormes”, relembra a diretora.

Mas, após meses de angustia e espera Juliana conta que valeu a pena. “O judiciário lento, processos que não priorizam a criança, que não correspondem ao que a lei determina e assim, meses se passaram. Depois de um ano recebi a ligação”, comemora.

 

Processo

Mesmo com o fato de uma delas ser aluna da escola que Juliana trabalhava, em momento algum, a diretora mencionou a menina que estava com o processo para adotá-la em andamento.

“Ela quase todos os dias chorava pela demora da família nova. Nas quintas, quando passava pela psicóloga do abrigo chegava aos berros, doente, com dor de ouvido e garganta, dormia na sala de aula… Precisei conviver com tudo isso sem poder fazer nada”, lembra.

Após iniciarem o processo de adaptação, as meninas ficaram um período ‘indo e voltando’ ao abrigo. “A sensação do regresso era incrível, começamos a aproximação, toda a família já enlouquecida querendo conhecê-las. A criança não ganha mãe e pai, ela recebe toda uma família e preparamos isso”, comenta.

Juliana conta que com tudo, elas mantiveram um vínculo forte com o abrigo. Faz dois anos que ‘voltaram para casa’ e ainda há sequelas daquele período. “Assim será para sempre. Algumas situações de saúde que são específicas da falta do cuidado em momento anterior, mas nada que o cuidado de mãe e pai não dê jeito”, alegra-se.

Até hoje, ela ainda devolve algumas roupinhas que elas mesmas tiram do roupeiro. “Acredito que isso seja importante para elas. Um vez só me pediram para levar balas para os amigos e assim fizemos”, acrescenta a diretora.

Mas afirma que hoje levam uma vida normal e acredita que estavam mais preparados do que muitos no momento da chegada. Para ela, o fato de ser professora e conviver com muitas crianças contribuiu muito.

 

Uma visão diferente

Juliana conta que a questão de não necessariamente ter filhos que ‘está na jogada’. Ela afirma que as pessoas idealizam a experiência da gestação, semelhanças físicas, idealizam essas coisas, que para ela nem existem. “Nós conseguimos ultrapassar essas questões”, avalia.

Para ela, a adoção é uma maneira de ter filhos e gerar é outra, uma em vez da outra. “Acredito que conviver com crianças me ensinou que é muito possível amar verdadeiramente crianças não geradas pelo meu ventre. E enfatizar que não é doação nem caridade, é maternidade”, pontua a professora.

A diretora acrescenta que doação se faz esporadicamente, depois de um tempo da vontade, as vezes enfraquece. “Da mesma forma a caridade. É possível parar de fazer, maternidade não. É uma decisão baseada no amor”, assegura.

Ela sempre acreditou que a adoção seria uma atitude a ser tomada mesmo antes conhecê-las. “Mas compreendi que o impulso deve se dar de alguma maneira, o ‘start’, seja por uma experiência trocada, um olhar, um abraço. Algo que o próprio sistema não consegue fazer pela dificuldade de se adotar estratégias seguras, que preserve a criança e capacite os futuros pais”, conta a professora.

Assim, para Juliana, a mensagem que fica é que os futuros pretendentes devem sempre obter informações, reconhecer a possibilidade da adoção no seu seio familiar, pois sem dúvida é uma experiência inigualável, tal como uma gestação.