Manguezais de Santa Catarina vivem desafio de se manterem em pé

Berçários naturais para várias espécies e importantes reservatórios do carbono azul, essas pequenas florestas são gigantes no seu potencial. Essenciais no combate às mudanças climáticas e estabilização de zonas costeiras, os mangues merecem destaque e pedem proteção neste Dia Mundial dos Manguezais, 26 de julho.

 

Laguna, no litoral sul catarinense, abriga a última área de mangues do Brasil, que tem início no estado do Amapá.  O pequeno remanescente desta vegetação em Laguna, porém, reflete o problema enfrentado em outras regiões do país. Segundo o Diretor de Pesquisa da Udesc, Jorge Rodrigues Filho, o mangue de Laguna está extremamente impactado, onde “parte da vegetação foi retirada e aterrada, para criação de gado na região da Madre”.

Numa saída embarcada para conhecer o local, é fácil visualizar a causa deste impacto. Onde há gado, não há mais mangue. Áreas foram aterradas para aumentar o espaço do pasto. Em outros pontos, a herança deixada pela carcinicultura, atacada pela mancha branca do camarão, também resultou em fragmentação do bioma.

Os benefícios e serviços ecossistêmicos prestados por essas florestas são incontáveis, pois além de serem berçários que abrigam peixes e crustáceos em fases jovens, são responsáveis pela qualidade da água, produção de matéria orgânica, além da provisão de alimentos, sendo fundamentais para a diversidade pesqueira.

Também são essenciais para controle da erosão da costa, evitam o avanço do mar, seguram enchentes e protegem o sistema costeiro. “Por serem áreas alagadas, funcionam como esponjas hidrológicas. Retém grande parte da água, com a subida das marés”, explica Jorge.

 FOTO MANGUE CAMINHOS DO MAR BAIA DE BABITONGA (1)

 

Mesmo sendo Áreas de Preservação Permanente (APPs), protegidas por duas leis federais – Da Mata Atlântica (n 11.428) e o Código Florestal (n 12.651), os manguezais e marismas estão cada vez mais ameaçados em outras regiões do estado. Mangues e marismas são vegetações similares, comuns em zonas de transição climática do litoral catarinense. Em Florianópolis, segundo o Atlas dos Manguezais do Brasil, foi suprimida quase toda a área de manguezais continentais e insulares existentes após a década de 70, com o avanço da BR-101 e aumento populacional. 

 

As duas maiores áreas desse ecossistema da capital ainda se mantêm em pé por estarem dentro de unidades de conservação federais. No sul da ilha, a Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé protege o manguezal do Rio Tavares, e no norte, a Estação Ecológica de Carijós, o mangue de Ratones.

 

Do outro lado, porém, bem ameaçados, encontram-se bosques de manguezal e marismas na desembocadura dos Rios Itacorubi, Saco Grande e Tapera. “O Rio Itacorubi chegou a apresentar concentração 50 vezes maior de fosfato que os outros rios analisados”, revelou um estudo feito pelo Professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Paulo Pagliosa, ao comparar a qualidade da água em mangues de áreas urbanizadas e não urbanizadas da cidade.

Os efeitos mais evidentes estão relacionados ao despejo de esgoto doméstico. As concentrações de nitrato, nitrito, silicato, amônia e fosfato identificados nas áreas urbanizadas foram, em alguns pontos, iguais ou até maiores que a quantidade encontrada em lugares como a Lagoa dos Patos (RS) e Baía de Guanabara (RJ), considerados os mais poluídos do Brasil.

Mas é no litoral norte do estado, na Baía de Babitonga, onde está localizada a maior floresta de manguezal do hemisfério sul. São mais de 82 quilômetros quadrados cobertos de bosque de mangue entre a encosta e as 206 ilhas, o equivalente a sete campos de futebol.

A região, que concentra cerca de 80% desse ecossistema no estado, exige atenção. Um estudo divulgado recentemente, coordenado pela UFSC, comprovou uma perda de aproximadamente 13,70 km² nos últimos 34 anos– o equivalente a 27% da área total – entre 1985 até 2019.

A pesquisa, comandada pelo professor Antonio Klein, da Coordenadoria Especial de Oceanografia, teve como um dos objetivos desenvolver metodologias para prever e mitigar efeitos da subida do nível do mar na Baía da Babitonga.

O projeto BaySqueeze, financiado por edital do CNPq, também constatou que a perda foi mais acentuada nos anos de 1997 e 2017 e na região de Joinville. Vale destacar também que dois dos principais rios que banham essa floresta são responsáveis pelo abastecimento de água da cidade mais populosa de Santa Catarina.

Segundo os resultados, se a expansão urbana for mantida na mesma velocidade e intensidade que o identificado pelas ferramentas de sensoriamento remoto, o manguezal pode sofrer uma importante pressão antrópica em menos de 100 anos, principalmente em Joinville. “Fizemos uma projeção com base no passado e sugerimos que se o mangue continuar a ser ocupado, ao invés de preservado, haverá uma falta de espaço para poder migrar em áreas urbanas”, explica Antônio Klein, ao contextualizar que o mangue precisa de recuo para se movimentar. Isso ficará impossibilitado se no lugar houver fragmentação e ocupação irregular.

No Atlas dos Manguezais do Brasil, as previsões alertam para os impactos das mudanças climáticas nos manguezais futuramente. “O aumento na frequência das tempestades e as mudanças nas correntes, somadas ao aumento no nível do mar, podem levar a um recuo dos manguezais à medida que as espécies migrem terra adentro em busca de condições ambientais ideais. Diante da impossibilidade de ocupar esses espaços, devido à existência de obstáculos físicos construídos, prevê-se uma extensa perda de habitat e de serviços de proteção e regulação fornecidos pelos manguezais aos ecossistemas de terra firme e à infraestrutura costeira”. 

O impacto socioambiental em comunidades tradicionais

A degradação desse ecossistema, porém, vai além dos problemas ambientais, atingindo também as comunidades tradicionais que dependem da pesca, deixando-os ainda mais vulneráveis. Um problema social, muitas vezes, invisível. Mangues devastados, impactam a qualidade e a diversidade pesqueira.

Situação vivenciada por muitos pescadores da Lagoa de Ibiraquera, em Imbituba, no litoral sul. É comum ouvir a comunidade falar sobre a perda de biodiversidade, o “sumiço” de algumas espécies e a redução do pescado.

“Quando eu era novinha, a água da lagoa era clarinha, era uma areia branquinha. Hoje a beira da lagoa tá cheia de lodo, a água é escura, com cheiro ruim. Antes tinha muito peixe, muito siri e camarão. Não sei porque o peixe não engorda mais”, conta desanimada a pescadora “Cecê”, como é conhecida por todos ali.

A fala vem de quem entende muito da pesca, ela é a primeira pescadora mulher do Brasil, com carteira profissional registrada. Outra referência na localidade, liderança comunitária e também defensora ambiental, Maria Aparecida – a “Cidinha”, alerta para a falta de proteção das áreas alagadas e banhados.

“A lei precisa incluir todas as áreas alagadas e fonte de recursos hídricos como de preservação permanente. A interpretação da lei é falha, e na hora de fiscalizar fica difícil”, defende Cidinha.

Perante a legislação brasileira, a zona de transição entre o manguezal e a terra firme, comumente conhecida por “apicum”, não é protegida. Em Santa Catarina, não há outra legislação estadual mais restritiva que proteja essas áreas de banhado. O que abre divergência na interpretação na hora de fiscalizar.

Aterro, esgoto irregular, ocupação das margens e despejo de resíduos, segundo Cidinha, estão acabando com a saúde ambiental desses lugares. “A qualidade do pescado caiu, com a destruição das matas ciliares e áreas alagadas. Ele tem até outro gosto agora. Isso mexe com a segurança alimentar, que já é outro patamar de risco”, diz.

Com equipes de fiscalização reduzidas e insuficientes, um problema em comum atinge as prefeituras da região, que não conseguem fiscalizar de forma efetiva todas as lagoas do complexo lagunar sul.

O Pelotão da Polícia Ambiental que atende essa região tem apenas uma viatura para fiscalizar todo o trecho entre as cidades de Jaguaruna e Garopaba, no litoral sul. Somente duas embarcações pequenas, sem efetivo 24 horas por dia. 

Além da falha na fiscalização, na opinião de Cidinha, faltam também políticas públicas.“Eu acredito que deve ser feita uma boa campanha de conscientização sobre a importância desses locais, políticas públicas que possam dar incentivo fiscal para os proprietários de terras e imóveis que protejam essas áreas alagadas, por exemplo. Restringir a lei e proibir o uso desses locais”.

O campeão em estocar carbono

Os manguezais possuem a capacidade de absorver até quatro vezes mais carbono, se comparado a outros biomas brasileiros, como a Floresta Amazônica, por exemplo.

Segundo um artigo inédito divulgado por pesquisadores brasileiros na publicação internacional “Frontiers in Forests and Global Change”, essa alta capacidade de sequestro de carbono “se dá porque os manguezais armazenam o carbono tanto do próprio ambiente, pelas plantas características do ecossistema, quanto aquele que vem de áreas florestais próximas”.

Como os mangues liberam muitos detritos e matéria orgânica,”acabam gerando uma produção bacteriana em volta deles, tornando o sedimento em torno deles também rico em carbono”, explica Jorge, Diretor de Pesquisa da Udesc.

“Esse grande conjunto de carbono nesses ecossistemas são importantes para regulação climática, mas também produzem uma vida muito importante associada”, completa.

Apesar desse potencial de estoque, os manguezais brasileiros não estão incluídos em áreas de proteção citadas como prioritárias para conservação nas metas apresentadas pelo Brasil, no Acordo de Paris. 

 

Por isso, Restaurar é preciso!

 

A alta capacidade de retenção de carbono faz da restauração dos manguezais uma das protagonistas em estratégias de mitigação e adaptação às mudanças do clima. De acordo com o Instituto Çarakura, alguns estudos mostram que “ecossistemas costeiros e marinhos, conhecidos como Carbono Azul, armazenam até cinco vezes mais gases do efeito estufa quando comparados às florestas tropicais. Soluções climáticas baseadas na natureza 

têm sido cada vez mais urgentes”, destaca a consultora e educadora ambiental, Ana Carolina Gonsalez .

A organização, sediada em Florianópolis, em parceria com um grupo internacional de investidores do mercado voluntário de carbono, está desenvolvendo um projeto de preservação e restauração de manguezais no Brasil – o “Maré da Restauração”. 

Em fase de prospeção e estudo de viabilidade, está mapeando áreas de Santa Catarina, entre elas, Laguna. Tem como objetivo identificar potenciais regiões para receberem apoio técnico-financeiro para restauração e conservação do maior número de  hectares desses ecossistemas. 

Na capital, outro projeto que envolve restauração de mangue, gramas e algas marinhas está na fase inicial, após o desastre ambiental sofrido pela Lagoa da Conceição, em 2021, com o rompimento da lagoa de evapoinfiltração de efluente da Estação de Tratamento de Esgotos da Casan.

“Cerca de 3.000 toneladas de peixe foram encontradas mortas após a tragédia. O estudo encontrou metais pesados nesses animais em valores muito acima dos razoáveis, além de inúmeras famílias e residências atingidas”, lembrou o Professor Paulo Horta, também da UFSC, que está à frente desse novo projeto em parceria com a Udesc e apoio dos órgãos ambientais. 

O maior desastre ambiental de Florianópolis trouxe impactos sociais, econômicos e ambientais, “por isso, elegemos a Lagoa da Conceição pelo grande contingente de pessoas que dependiam desse ecossistema e fomos contemplados com recursos do Edital Biodiversa, para trabalhar com ambientes que possam absorver carbono e mitigar os efeitos das mudanças climáticas, melhorando a resiliência desses ecossistemas”, explica.

Com previsão de acontecer até 2025, nesse primeiro ano, segundo Horta, o objetivo  é desenvolver a percepção da comunidade, promovendo a ciência cidadã. 

“Começamos nas escolas e realizamos um curso para cerca de 70 professores, em duas etapas, que resultará na implantação de projetos nas escolas posteriormente.“ Importante é mostrar para as crianças que é possível cuidar da natureza e restaurar o que foi degradado”. 

A partir do ano que vem, a proposta é restaurar cerca de dois hectares de uma parte atingida pela Lagoa da Conceição. “Estamos buscando outras parcerias e fontes de financiamento para chegarmos mais próximo de uma efetiva recuperação, que representa uma área muito maior impactada”.

Já que 2021 foi o início da década da restauração de ecossistemas da ONU (Organização das Nações Unidas), o momento é propício para reunir apoio político, pesquisa científica e recursos financeiros na restauração como alternativa para mitigar a perda de habitat de manguezais.

Semana dos Manguezais promove debate sobre conservação e restauração

Pela primeira vez, Santa Catarina recebe, neste dia 26 de julho, em Palhoça, de forma presencial, a Semana dos Manguezais – um olhar integrado para a restauração global. Evento idealizado pelo Instituto Çarakura, com apoio do Route Institute e parceria com a Climate Neutral Group, além de outras organizações. 

No dia 31 de julho também está programado um mutirão de limpeza nos manguezais e marismas de Laguna.

 

Mais informações: www.semanadosmanguezais.org

Texto: Gisele Elis (MTB 6822)
Fotos produzidas: Gisele Elis e Alícia Marques
Colaboração de Fotos: Projeto Toninhas/Caminhos do Mar e Instituto Çarakura

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