Maconha medicinal: ‘Precisei de um tumor na cabeça para vencer preconceito’

A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) decidiu hoje a regulamentação no Brasil para o registro de medicamentos à base de canabidiol, um componente presente na maconha. Há a expectativa de que o órgão também decida regras para o plantio da erva com fins médicos. A decisão pode mudar a vida de brasileiros que há anos travam uma cruzada para conseguir a substância, seja ela importada ou extraída de plantas cultivadas no próprio quintal. Hoje, o paciente precisa pedir autorização à Anvisa para a importação das substâncias. 

“Médica não quis receitar canabidiol” A dona de casa Neide Martins, 55, enfrentou preconceito médico quando decidiu pedir a uma especialista que receitasse canabidiol para o filho, Vitor, hoje com sete anos. “Ela não quis receitar. Disse que não sabia o que poderia acontecer a ele daqui a dez anos”, disse a mãe.

Vitor foi adotado quando tinha dez meses. Saudável, falou e andou precocemente. “Depois de quatro meses em casa, percebemos alguns espasmos”, conta. Ela procurou um médico, “que disse que não era nada”, e foi a outro profissional que o diagnosticou com epilepsia refratária. Com o tempo, as crises começaram a aumentar. “Só a quinta médica descobriu a Síndrome de West”, relata. Esse é um tipo de epilepsia que deu origem a outra, a de Lennox-Gastaut. “Entramos com medicação tradicional, mas não adiantou. Ele foi perdendo a coordenação motora, a fala e chegou a ter 80 crises por dia. Eu estava perdendo meu filho.”

Foi quando ela ouviu falar do canabidiol e pediu à médica que o receitasse. “Ele estava tomando 18 comprimidos por dia. Caia tanto no chão que tem cicatrizes por toda a cabeça. Conseguimos um capacete apropriado e uma cadeira de rodas, porque ele já não conseguia mais ficar em pé. Vi meu filho regredir gradativamente. Ele já não engolia a comida, não esticava o braço, ficou em estado vegetativo. Entrei em depressão”, afirma Neide.

Agente de viagem, ela abandonou o emprego para se dedicar exclusivamente ao filho. “Fui para o sexto médico. Pedi pelo amor de Deus: ‘Ele já tomou de tudo, eu assino qualquer termo de responsabilidade’. E ele prescreveu canabidiol pela primeira vez em fevereiro de 2016.” Os resultados não apareceram tão rápido. “Quem fazia uso do remédio resolvia o problema em um, dois meses, mas o Vitor não melhorava”, relata. “Não desisti. Com sete meses de uso, a gente conseguiu achar a dosagem e controlar a Lennox. Ele já não caía e pudemos tirar o capacete.”

No final do ano passado, a melhor das notícias: um eletroencefalograma indicou que a síndrome de West estava contida. “Quase caí da cadeira, nem a médica acreditou. O Vitor não vai deixar de se epilético, mas será esporádico, com intensidade cada vez menor”, conta a mãe. Neide gasta em média US$ 3.000, fora o frete, para importar os 12 frascos de 19 ml de óleo que o garoto precisa consumir todo ano, um valor que chega a R$ 12,6 mil em valores de hoje. “A gente tinha um carro bom, mas vendemos para ter o dinheiro para o tratamento.”

“Planto em casa e faço meu remédio” 

Gizele tem autorização para cultivar 30 plantas Imagem: Arquivo Pessoal A dona de casa Gizele Thame, 61, precisou enfrentar o preconceito próprio e o da família quando decidiu tratar um tumor no cérebro usando óleo à base de maconha. “Eu tenho um tumor ao lado da hipófase, responsável pelos hormônios do corpo. Sem operar ou sem tratamento o tumor poderia crescer até estourar.”

“Como estava perto do nervo óptico, eu poderia ficar cega e dependeria de 21 remédios após a cirurgia. Preferi não operar, contra tudo e contra todos. Só um filho meu me apoiou”, conta Gizele, que também resistiu a se tratar com o óleo da maconha.

Sem dinheiro para importar o remédio, Gizele decidiu plantar em casa por conta e, com os exames em punho, foi à Justiça acompanhada de um advogado a fim de conseguir um habeas corpus que lhe permitisse cultivar. “Se alguém viesse aqui em casa, eu mostraria meus exames e o habeas corpus. Mesmo assim, eu poderia ser detida até conseguir o habeas corpus definitivo.” O documento chegou oito meses depois. “Ninguém pode me prender agora porque eu posso plantar 30 pés, mas apenas cinco em floração. Também posso portar até 180 ml do óleo.”

Vencendo o preconceito

Gizele demorou oito meses para aceitar o tratamento e ainda mais tempo para contar aos amigos e familiares. “No começo eu não falava para ninguém, era segredo. Aos poucos fui contando aos mais próximos. Uma grande amiga me disse que, se não gostasse tanto de mim, não aceitaria meu tratamento.”

Gizele conta que a planta demora quatro meses para crescer e florescer. Ela colhe, deixa a planta secando de ponta cabeça por uma semana e então extrai o óleo. “Limpa, põe no forno para ficar bem seca. Aí põe em uma sacola com gelo seco, que serve de peneira. Eu misturo em um diluente a parte que cai peneirada. Depois coloco em uma panela e deixo cozinhando por quatro horas. Esse óleo é o que eu uso.” Gizele afirma que, em dois meses de uso, os sintomas eram outros. “A insônia e o estresse acabaram e a qualidade do sono é excelente”, diz. E o que parecia impossível, aconteceu: “Depois de um ano e meio, o tumor regrediu de 1,2 centímetro para 0,7 e se mantém assim há um ano e meio”.