Computação quântica possibilita ruptura tecnológica

Enquanto as tensões entre Estados Unidos e Irã se intensificam e levam as redes sociais ao frenesi com a possibilidade de uma “Terceira Guerra Mundial”, os norte-americanos já travam mais silenciosamente uma batalha contra outros por uma tecnologia que promete ser disruptiva e modificar diferentes áreas no futuro: a computação quântica. Vista como um divisor de águas, cientista olham para o sistema com expectativas que vão desde a quebra de paradigmas nos sistemas de comunicação e na medicina até o forte impacto no mercado financeiro.

Para o professor Frederico Borges de Brito, do Instituto de Física de São Carlos, da Universidade de São Paulo, é preciso entender que a área está em sua infância. Quando amadurecer, terá um efeito profundo em quase todas as facetas de nossas vidas. “No estágio atual, só posso falar de potencial. O que temos observado nos últimos cinco anos em especial é um avanço impressionante”, explica. Para o docente, não há nada que impeça os computadores quânticos de substituir as tradicionais CPUs. Contudo, aponta que seu uso deve ser focado em problemas de interesse para a humanidade, do ponto de vista econômico e social.

Um exemplo é o uso na indústria farmacêutica, que pode acelerar a descoberta de medicamentos através da comparação de moléculas de computação quântica. Hoje, empresas levam cerca de 10 anos e, geralmente, gastam bilhões de dólares para descobrir um novo remédio e lançá-lo no mercado. Além disso, executam centenas de milhões de comparações em computadores clássicos. No entanto, eles são limitados a moléculas de um determinado tamanho. Com computadores quânticos, será possível comparar moléculas muito maiores, o que abre as portas para maiores avanços e a possibilidade de curas para uma série de doenças, com custos e tempo reduzidos. Também será possível analisar micróbios, a fim de criar novas vacinas e reduzir efeitos colaterais indesejados.

“É um termo da moda, mas há muito mal-entendido sobre o que exatamente ela é e como nos afeta”, argumenta Patrik Nohe, gerente de produtos sênior na GlobalSign, empresa de certificados digitais para proteção de sites contra invasões, violações, e fraudes. Ele aponta que há uma gama de possibilidades para o uso desses sistemas. Segundo o australiano, uma das falsas suposições é de que é se trata de um computador normal, mas mais rápido e mais poderoso. “É algo fundamentalmente diferente, mas que pode simular um computador clássico. Não há razão para fazer coisas simples, como checar e-mails, fazer uma chamada via Skype, jogar. Já há máquinas que funcionam muito bem para isso”, avalia.

Saheen Najeeb, engenheiro e consultor em tecnologia da Fingent – empresa de desenvolvimento de softwares com base em Nova Iorque – aponta que os computadores quânticos são bons em resolver problemas logísticos e na otimização das chamadas “soluções ótimas”. “Como levamos mercadorias, serviços ou pessoas para o local certo rapidamente e eficientemente? Ou como podemos prever como o clima, a epidemia de cólera, ou como algum outro elemento do nosso ambiente pode se comportar com o tempo? São alguns dos muitos problemas sociais que são logísticos e os computadores quânticos podem calcular grandes quantidades de dados com pouca energia e requisitos, abordando assim as mudanças climáticas”, analisa o indiano.

Poder do mundo subatômico

As novas máquinas utilizam conceitos da física quântica, que descreve o comportamento de átomos e partículas fundamentais, como elétrons ou fótons. Enquanto as máquinas tradicionais codificam e armazenam informações em uma série de 0 e 1 – os chamados bits –, as quânticas utilizam qubits, que também partem desses dígitos binários, mas podem assumir uma combinação intermediária dos dois, em um estado indefinido antes de ser medido. Essa capacidade, chamada de superposição, é um dos grandes diferenciais de velocidade de processamento de dados, que levariam milênios para as máquinas tradicionais conseguirem atingir.

“Estamos acostumados com algumas dicotomias, estados bem distintos. Por exemplo, sabemos que um gato pode estar vivo ou morto. No mundo quântico, por conta da natureza de como os sistemas físicos se revelam nesse regime, a gente pode ter um estado físico em que se poderia interpretar que o gato estivesse em uma superposição entre vivo e morto. É um estado indeterminado em relação a esse aspecto até que a gente faça uma medição”, explica Brito.

Os qubits ainda têm uma propriedade chamada emaranhamento, o que significa que todos estão conectados entre si de maneira fundamental: quando as condições de um são alteradas, isso afeta todos os outros sem nenhum esforço. Contudo, para manter o sistema operando, os equipamentos precisam ser resfriados a uma temperatura de quase zero absoluto (-273,15 °C), para que os átomos parem de se mover, dentro de uma geladeira especial. Ou seja, não é qualquer empresa que conseguirá alcançar as condições necessárias para mantê-los em funcionamento.

Guerra Fria Quântica

Se durante a Guerra Fria, Estados Unidos e União Soviética protagonizaram a chamada corrida armamentista e espacial, os norte-americanos são, agora, atores da disputa quântica. Seu adversário, contudo, é outro: a China. Embora os gastos gerais do país asiático sejam desconhecidos, seu governo está construindo um Laboratório Nacional de Ciências da Informação Quânticas, no valor de 10 bilhões de dólares, em Hefei, província de Anhui, que deve ser inaugurado em 2020. A pesquisa quântica financiada pelos EUA é de cerca de 200 milhões por ano, de acordo com um relatório do governo de julho de 2016.

Nos últimos anos, Pequim aumentou agressivamente seu ritmo de pesquisa quântica, e o presidente Xi Jinping estabeleceu uma estratégia nacional para a China se tornar tecnologicamente autossuficiente. O relatório da Avaliação Mundial de Ameaças de janeiro de 2019 ao Senado admitiu que a liderança dos Estados Unidos em ciência e tecnologia foi significativamente corroída, principalmente por causa dos ganhos chineses.

“A produção estrangeira e a adoção de tecnologias avançadas de comunicação, como redes sem fio de quinta geração (5G), provavelmente desafiarão a competitividade e a segurança de dados dos EUA. Já os avanços na computação quântica prenunciam desafios aos métodos atuais de proteção de dados e transações. A implantação estrangeira de um computador quântico em larga escala, mesmo 10 anos ou mais no futuro, colocaria as informações confidenciais criptografadas com os algoritmos mais amplamente utilizados atualmente em um risco muito maior de descriptografia”, afirma o documento.

Segurança em risco

Uma organização ou uma nação que possua tecnologias de computador quântico tem a possibilidade de ser uma ameaça significativa à segurança cibernética. Daí surge o interesse em assumir a dianteira nessa corrida. O engenheiro Will Ellis alerta que muitas tecnologias atuais de segurança cibernética dependem de criptografia ou algoritmos difíceis que os computadores atuais não conseguem superar. Isso torna esse modelo uma maneira eficaz de proteger você e seus dispositivos. “Com o poder teórico de um computador quântico, essas máquinas têm o potencial de quebrar chaves ou criptografias de segurança que os computadores atuais não conseguem”, explica.

Foi percebendo os riscos da iminência da tecnologia quântica que o australiano abandonou seu posto de líder de engenharia de nuvem da IBM em seu país, em 2016, para criar uma empresa de segurança digital. “Sei que o setor está monitorando o desenvolvimento para ver como eles serão capazes de reduzir o risco dessa possível ameaça”, diz o fundador da Privacy Australia. Ele também aponta que quem conseguir dominar o poder da computação quântica antes de qualquer outra pessoa estará muito mais próximo de tornar seus sistemas impenetráveis.

Uma pesquisa com líderes de Tecnologia da Informação de 400 organizações internacionais realizada neste ano, conduzida pela DigiCert – uma das maiores empresas de tecnologia do planeta –, mostra que 71% veem o surgimento de computadores quânticos como uma ameaça à segurança cibernética e esperam que sejam empregados para decifrar códigos de criptografia nos próximos três anos. Além disso, 95% dos entrevistados disseram que já estão discutindo pelo menos uma tática para se preparar para a criptografia pós-quântica, enquanto um terço disse que já estabeleceu um orçamento de criptografia pós-quantum e 56% responderam que estão trabalhando para estabelecer um.

Para Patrick Noe, as preocupações são válidas, mas ele lembra que os sistemas atuais já trazem fragilidades. É preciso, portanto, combater as atuais falhas e problemas antes de abordar potenciais ameaças. “A computação quântica ainda está, na melhor das hipóteses, a vários anos da chegada. Nesse ponto, haverá consenso sobre uma solução. A criptografia que temos é vulnerável, e a computação quântica será o prego final em seu caixão”.

Empresas correm pela supremacia

Apesar dos cientistas Richard Feynman, Paul Benioff e Yuri Manin terem apresentado a ideia de que a computação quântica tinha o potencial de resolver problemas que sua vertente clássica não podia ainda nos anos 1980, seus avanços são recentes. Entre 2006 e 2008, Frederico Borges de Brito fez parte do Thomas J. Watson Research Center, da IBM, em Nova Iorque, onde trabalhou com uma bolsa de pesquisa vinculada a seu pós-doutorado fornecendo aporte teórico para o desenvolvimento de uma máquina do tipo. “Havia uma pressão natural, porque tinha todo um departamento trabalhando com o espírito de alcançar novos resultados mais rápidos na computação quântica”, lembra. “Até aquele momento, era mais algo visto como em desenvolvimento acadêmico, não como alvo de produto comercial”, completa.

Em 2011, a empresa canadense D-Wave Systems – após mais de uma década de pesquisa, acúmulo de 60 patentes e homologação de outras cem –  lançou o primeiro computador quântico comercial do mundo. Equipado com um chipset de 128 qubits, D-Wave One custava à época 10 milhões de dólares, e seu processador utilizava uma única operação matemática para resolver problemas de otimização discreta. Como executava apenas tarefas específicas, era facilmente superado por CPUs tradicionais. Durante a Consumer Electronic Show (CES) de fevereiro de 2019, a maior feira de tecnologia do mundo, o Q System One, da IBM, foi a grande atração. A máquina de design imponente e futurista, de 2,8 metros de altura e protegida por uma caixa de vidro hermeticamente fechada, é o primeiro computador quântico para uso comercial e científico no mundo.

A corrida pela pela liderança nesta tecnologia ganhou, em outubro, um marco considerado muito importante por especialistas da área: a Google anunciou que havia alcançado a chamada supremacia quântica. O termo é usado para determinar o momento em que um computador quântico conseguiria resolver um problema que demoraria muitíssimo tempo a mais para ser solucionado pelas máquinas convencionais. O processador da empresa teria resolvido em 3 minutos e 20 segundos um cálculo que levaria 10 mil anos para ser executado pelo mais avançado supercomputador da atualidade, o Summit, da concorrente IBM. 

Entusiasmo e controvérsias se seguiram no mundo científico. “A IBM refutou essa descoberta, dizendo que, ao ajustar a maneira como o Summit aborda a tarefa, ela pode ser executada em 2,5 dias. Além disso, o problema resolvido não tem implicações práticas. Somente mostra o enorme potencial dos computadores quânticos e sua capacidade de desbloquear esse potencial nos próximos anos”, diz Saheen Najeeb.

Essa ideia é corroborada pelo professor Frederico Borges de Brito. Ele considera que, mesmo com os ajustes na máquina da IBM, o computador quântico ainda seria muito mais rápido, mas não teria esse fator de supremacia. “Nesse estágio atual, o resultado do Google tem muito mais valor de uma prova de princípio de que de fato os computadores quânticos estão cada vez mais próximos de alcançar um patamar em que vão se tornar viáveis para problemas que a humanidade tem interesse”, finaliza.