“Todo preso é melhor do que a sua culpa”

Carlos Henrique Machado Fernandes tem 44 anos, trabalha na paróquia São Francisco de Assis, no bairro Monte Castelo, em Tubarão, há seis anos. É padre há oito e professor há 16. Ele cursou letras, filosofia, teologia e linguística aplicada no ensino da língua portuguesa. É assessor da pastoral carcerária há nove anos. 
Terezinha Rozemí Zagroba tem 64 anos, nasceu no Paraná, mora há 21 anos em Tubarão, com sua família. É casada, tem três filhos e três netos. Ela está à frente da coordenação da pastoral carcerária desde 1998.
 
 
Mirna Graciela
Tubarão
 
Notisul – Desde quando existe a pastoral carcerária, em Tubarão?
Terezinha Rozemí Zagroba, a Roze –  A pastoral existe desde 1997, iniciou com um grupo não oficializado, que visitava os detentos. Então, veio uma carta do Instituto Teológico de Santa Catarina – Itesc, em Florianópolis, do padre Ney Brasil, onde ele pedia a oficialização da pastoral carcerária, em Tubarão. Como o presídio era no bairro Humaitá de Cima, o padre Marcos Herdt, que era o pároco daquela localidade, resolveu montar uma equipe. O padre Ney foi voluntário e lidou com a pastoral durante 30 anos.   
 
Notisul – A pastoral carcerária é ligada diretamente a esta paróquia? 
Padre Carlos Henrique Machado Fernandes – É ligada à Diocese de Tubarão. A Igreja Católica Apostólica Romana possui a pastoral carcerária na grande maioria das dioceses. Então, faz parte das paróquias, como também é ligada ao bispo e à proposta pastoral da igreja local, de cada diocese, de fazer um trabalho de aproximação dos presidiários.
 
Notisul – Quantas pessoas atuam hoje na pastoral?
Roze – Ativamente são sete integrantes. Há dois voluntários que recebem a formação para começar a participar das atividades.
Padre Carlos – Uma das grandes dificuldades justamente é esta, de ter pessoas disponíveis para atuar na pastoral carcerária. Têm muitos que entram e pensam que o trabalho é fácil. Depois, se confrontam com os problemas que encontramos. Mas, salientamos que os obstáculos não são relacionados aos detentos, mas à estrutura dos presídios. Sobre a entrada e permanência dos nossos membros e a liberdade que têm com os apenados. Não há falta de educação por parte dos presos, todos são, na sua grande maioria, educados e respeitadores. Sentimos um imenso carinho e eles nos acolhem muito bem. 
 
Notisul – Quem deseja fazer parte da pastoral carcerária, como deve proceder?
Roze – Tem que ter inicialmente uma formação. Depois, a pessoa participa de reuniões, passa por uma reciclagem e recebe as normas. Antes de ter a sua carteirinha, este voluntário visita um presídio algumas vezes somente para observar. Muitas pessoas ficam chocadas, isto ocorre. Uma das exigências que somos obrigados a respeitar é de que pessoas com parentes presos não podem ser integrantes. Assim teríamos vínculos extras aos dos nossos objetivos.
Padre Carlos – Também é bom destacarmos que estamos abertos a outras igrejas, todos têm os seus espaços nos presídios masculino e feminino, em Tubarão. Não é exclusividade da Igreja Católica. Se um membro de outra igreja desejar se juntar a nós, também aceitamos, independente da religião. Pode ser assim ou a formação de um grupo deles. Porque, às vezes, os nossos dogmas, a maneira de expressar a fé se diferencia. Mas, aquilo que nos une, neste sentido, de trabalhar com os presos, foi Jesus quem disse: ‘Estive preso e viestes me visitar’.  
 
Notisul – Como funcionam as ações na prática?
Roze – Hoje não existem tantas, pois o sistema carcerário mudou muito, mas já promovemos crismas, catequeses, batizados, missas, assistência às gestantes com enxoval e também visitas às famílias dos detentos, um acompanhamento na medida do possível. Já ocorreu de o pai preso ser batizado com o filho. Não estamos tão assíduos por causa da falta de voluntários.
Padre Carlos – São pessoas que não somente tenham amor à causa, mas que permaneçam. Muitos vêm conhecer, frequentam alguns meses e, depois, desistem, isto e muito comum. Tivemos um tempo em que entregávamos roupas, calçados, livros, cadernos, mas isto faz parte do passado. Hoje não podemos nem levar bíblias. Eles dizem que têm emprestados do próprio Presídio Regional Masculino, no bairro Bom Pastor. E, no feminino, estamos autorizados a levar o nosso canto, nossa oração e reflexão, uma palavra de estímulo para que eles aumentem um pouco a sua autoestima, que geralmente está muito baixa.
 
Notisul – Com que periodicidade vocês frequentam os presídios? A entrada é livre?
Padre Carlos – É tudo marcado, vamos somente em um dia da semana. Às vezes, eles abrem uma exceção quando desejamos fazer alguma atividade diferente ou uma visita específica. Os diretores, de vez em quando, são flexíveis. Mas, geralmente, temos que esperar para sermos atendidos, já sofremos muito. Muitas pessoas abandonaram a pastoral carcerária em função disto, pela demora em sermos liberados para entrar. Somos revistados, todas as semanas, mas não nos importamos, estamos acostumados. O que fez realmente muitos membros desistirem é a morosidade para nos receber. Agora melhorou bastante com os diretores Robson de Souza (masculino) e a Juliana Borges (feminino). Não enfrentamos este problema, mas já passamos muito por isto.
 
Notisul – Como a pastoral se mantém?
Roze – A pastoral carcerária recebe um apoio do juizado criminal com o dinheiro proveniente de multas. Eles têm as instituições castradas e direcionam uma quantidade em forma de rodízio. De vez em quando recebemos uma verba e este dinheiro é empregado em assistência médica dos presos, enxoval para as mulheres, consultas, compra de óculos, onde analisamos as condições de cada um. Uma proposta do diretor do presídio masculino, o Robson, é de que consigamos prestar assistência na soltura do detento. Muitas vezes, ele é de fora e não tem dinheiro para voltar a sua cidade. Uma das propostas é de que a pastoral viabilize este apoio, com a compra da passagem.
 
Notisul – Como a pastoral carcerária atua na educação e na oportunidade de emprego?
Roze – No presídio feminino tem um ponto positivo neste aspecto porque tem escolarização. Elas têm as aulas dentro do projeto de Educação de Jovens e Adultos, o EJA. O padre Carlos já lecionou lá. No masculino tem um projeto de alguns anos de uma sala de aula, que ainda não vingou. Quanto ao trabalho, existe o projeto de abrir uma fábrica de lajotas. Hoje, eles trabalham com materiais elétricos da empresa Botega. No feminino, as mulheres fabricam grampos de roupas e uma empresa dá assistência para elas produzirem bijuterias, quando recebem meio salário cada uma. São 11 que trabalham.
Padre Carlos – Ainda sobre a sala de aula no masculino, não sabemos por que ainda não deu certo. Inclusive há pedagogas que fazem um trabalho de fichas de leitura, mas a sala, infelizmente, em um presídio que tem mais de 500 homens, não foi previsto este lugar. Esta é uma grande lacuna. Não tivemos oportunidade de opinar sobre isto. Soubemos que o presídio não tem obrigatoriedade de ter sala de aula, somente penitenciária. Mas, com um pouco de humanidade, ajudaria muito. Embora tenhamos, graças a Deus, alguns alunos que são dispensados, os do semiaberto, para estudar e trabalhar fora.
 
Notisul – Quando se fala em ressocialização, há várias discussões sobre o assunto. Muitos não acreditam que são poucos que alcançam isto.
Roze – Mas eles existem. Posso citar dois casos que presenciei de ex-detentos que se ressocializaram. Um deles era de uma família bem desestruturada, que conseguiu se levantar após ficar preso por uns três anos por roubo. Hoje, ele tem a sua casa, o seu carro e mora em Tubarão. O outro foi um crime hediondo cometido na sua juventude por causa de drogas. Ele deveria ter uns 20 anos e pegou 23 anos de prisão. Mas, aproveitou este tempo para arrumar a sua vida e estudou por correspondência. Depois, foi transferido para o Presídio São Pedro de Alcântara, em Florianópolis. E, por bom comportamento, conseguiu tirar 11 anos da condenação. Ele voltou para o presídio, em Tubarão. A Ferrovia Teresa Cristina é uma empresa que apoia muito a ressocialização e investiu neste detento. Hoje, ele continua na ferrovia, está bem, tem dois filhos e construiu uma casinha. Padre Carlos – Como professor, vejo que podemos impregnar valores verdadeiros na mente de cada um. Agora, como padre, percebo que a nossa presença é importante por meio de uma oração, de uma benção, mas ainda precisamos de mais contato, por isto priorizo a questão da educação para que eles construam novos valores em suas vidas e também possam estar munidos de uma autoestima a fim de batalharem lá fora. É muito difícil um detento sair do presídio, às vezes ele não tem o dinheiro da passagem para voltar para suas casas. Uma vez com a ficha suja, muitas pessoas discriminam e não dão oportunidade de emprego. Por isto que dar uma chance a um preso é lhe proporcionar uma nova vida. Já encontrei muitos que estudam, trabalham e falam: “Lembro do tempo que o padre visitava o presídio”. Hoje estão ressocializados, tanto mulheres, como homens. Tem uns que dizem com toda a clareza que naquele lugar, nunca mais. Grande parte da sociedade acha que os detentos só comem, bebem e dormem. Isto é besteira, eles têm que cedo responder a chamada de presença, o café é cedo, não é aquela ‘vadiagem’ de dormir até o horário que quiserem. Eles têm que cumprir regras.
 
Notisul – Vocês também têm uma ligação com o Centro de Atendimento Socioeducativo Provisório (Casep). Como é a questão do adolescente infrator? 
Roze – No Casep, podemos levar materiais para artesanato, escolar e de higiene, e roupas. Também fizemos a assistência. Todas as quartas-feiras é dia de visita. E temos que alternar, como nossa equipe é pequena, a cada semana é em um presídio. Então, obviamente, não conseguimos atender as três unidades, em Tubarão, como gostaríamos. No Casep tem um adolescente em que a mãe está presa no feminino. A maioria deles é de famílias desestruturadas, não têm cobrança para frequentar a escola, não há regras, desde pequenos estão largados e se voltam para a criminalidade. Quando promovemos alguma campanha, ouvimos: ‘Com esta matança? Assaltaram a minha casa’. Hoje, nas circunstâncias em que vivemos, a sociedade se revolta, mas trabalhamos para que todos entendam de que poderia ser um filho deles na prisão. Se cada um fizer a sua parte, acreditamos que esta violência reduzirá.  
 
Notisul – Como visualizam o futuro da pastoral?
Padre Carlos – Mais pessoas juntando-se a nós para que pudéssemos chegar a um número maior de presos, todas as semanas, divididos em equipes, com assistência às famílias. E atingir as unidades prisionais de Laguna e de Imbituba, onde também estão os detentos que pertencem a nossa diocese e que não conseguimos atender.
 
Notisul – Há tantos anos à frente da coordenação da pastoral, que avaliação podes fazer, o que mudou em tua vida?
Roze – É uma missão, um chamado de Deus. Na época que iniciei estava com uma depressão muito forte, sentia um vazio em minha vida e não sabia o porquê. Então pensei no que poderia fazer. Recebi o convite para entrar na pastoral. No início fui muito contrariada pela minha família, pois preferiam que eu entrasse em outra instituição. Mas aceitei e, um ano depois, a coordenadora ficou doente e o padre Marcos me colocou na função. A razão por estar tanto tempo é justamente pelo número pequeno de integrantes e ninguém quer assumir este compromisso. Visto a camisa pelo preso, inclusive quero esclarecer sobre os que recebem o salário, pois são muitos criticados. Nas campanhas sociais não conseguimos muito com a sociedade civil. Faz sete anos que damos brinquedos para as crianças, no natal, são filhos de presidiários. E conseguimos por meio da Seicho-no-Ie o, que faz um trabalho muito significativo. A mensagem que quero deixar é para que a sociedade não seja tão radical, pois se derem apoio a um preso, é um a menos que amanhã poderá praticar um crime.
Padre Carlos – Estes salários são para os detentos que têm família, que estavam registrados, com carteira assinada, no momento em que foram presos. Este papo que corre na sociedade é mentiroso, são ideias erradas, que não têm fundamento, de que todos os presos recebem salário. O que estava ocioso, sem trabalho, não ganha nada, a família não é beneficiada. 
 
Notisul – Que mensagem o senhor deixaria à sociedade?
Padre Carlos – Temos que mudar muita coisa em nossa sociedade para termos menos presos. Eles são vítimas de um sistema social que privilegia os grandes e discrimina os pequenos, de um grande contraste econômico que existe entre pobre e ricos, de uma desestrutura familiar quando as igrejas cristãs ensinam o amor entre o casal, a permanência do vínculo matrimonial. Gostaria de fazer um pedido aos empresários, aos diretores de presídios, aos juízes, advogados, agentes penitenciários, que olhem para a característica de Deus e possamos imitá-lo na bondade, na fidelidade e na justiça. Quando formos assim aqui fora e as pessoas que estão à frente de nossas unidades prisionais tiverem este olhar misericordioso, estaremos dando a nossa cota de contribuição para que a sociedade seja mais do jeito que Deus quer. Que possamos viver melhor, em um mundo mais humano, mais justo, mais fraterno, com mais paz, amor e alegria entre todos. 
 
Padre Carlos por Padre Carlos
Deus – Tudo
Família – Base da estrutura humana
Trabalho – Fonte de dignidade
Passado – Nas mãos de Deus
Presente – Em nossas mãos
Futuro – A Deus pertence
 
 
"Os detentos têm muitas saudades de seus familiares, da vida que tinham, mas, ao mesmo tempo, com vontade de ter uma diferente. Isto porque dos 536 homens e 92 mulheres que ocupam os presídios de Tubarão hoje, 90% estão reclusos por causa do envolvimento com drogas. A nossa dificuldade, além da carência de pessoas neste trabalho da pastoral é, ao mesmo tempo, contribuir para que os presos saíam um pouco mais trabalhados no sentido positivo. Por isto, motivamos os que têm contato direto com eles para serem pessoas que contribuam para a conversão, a melhora daqueles que, em breve ou com mais tempo, estarão novamente na sociedade. Uma vez que vão para lá e voltam piores, são um risco de violência, de atrocidades aqui fora".  
 
"Somente continuamos o trabalho, não pelo apoio da sociedade, mas porque pensamos nos presos que precisam de nós”.
 
“Eles sentem alegria pela nossa presença e queremos crer que, por pouco que seja, contribuirá para que se tornem homens e mulheres diferentes".