“Eu sei quem sou”

 

Gabriela Silva nasceu como Gesualdo Silva. Tem um irmão e cinco irmãs. “Hoje, são seis mulheres e um homem (risos). Minha mãe brinca muito com isso. Todos me aceitam como sou. Tenho muito orgulho da minha família”, valoriza. Uma das primeiras, senão a primeira, transexual a assumir sua condição em Tubarão, Gabriela quebrou paradigmas. Formada em letras, é professora e vê na escola um dos caminhos para acabar com o preconceito e o pré-conceito. “Os estados, os municípios precisam evoluir na questão de políticas públicas. Queremos fazer parte da sociedade. Ainda não fazemos. Na maioria das vezes, não somos vistas como cidadãs. Tenho certeza de que, se a escola, se a sociedade, se a igreja abrirem espaço para discutir a sexualidade, as pessoas serão mais felizes, porque criaremos um mundo com menos preconceitos. As pessoas se sentirão seguras para assumir quem são”, discorre. Presidenta da Associação das Transgêneres da Amurel (Gata), Gabriela explica que a maior luta hoje é pela inclusão e pelo tratamento igualitário das transexuais. “A expressão direitos humanos já diz tudo: humanos somos todos, independente de gênero, de preferência sexual. Na prática, não é isso que ocorre. A luta não é para sermos tratadas diferente, mas igual. As pessoas têm que olhar para o lado e ver ou humano, não um gay, uma lésbica, uma transexual. Eu sei o que é sofrer por ter assumido minha transexualidade. O preconceito foi superado? Não em alguns aspectos”, admite. A escolha do nome Gabriela não é mero acaso. “Estava na faculdade quando li Gabriela, de Jorge Amado. Fiquei imediatamente apaixonada por aquela mulher lutadora, ousada, diferente, contestadora. Me li naquelas páginas”, descreve.
 
Zahyra Mattar
Tubarão
 
Notisul – Quando você se descobriu transexual?
Gabriela – Os primeiros sinais surgiram aos 7 anos. Ganhava presentes masculinos e morria de inveja das minhas irmãs. Elas sim ganhavam coisas legais, como bonecas (risos). Nunca me encaixei no padrão de menino. Lembro que teve um Natal que ganhei um revólver. Aí foram bater uma foto. Eu apareço em posição feminina: mão na cintura, perninha levemente dobrada e sem a menor intimidade com a arma (risos).
 
Notisul – Como foi na escola?
Gabriela – A pior experiência da minha vida. Eu sabia que era diferente, mas não queria ser diferente. Era excluída e motivo de chacota. Sofri muito. Desde criança, nunca gostei de brincadeiras de meninos. Na escola, tinha que jogar futebol. Na maioria das vezes, chegava em casa com a bexiga estourando porque na escola tinha que usar o masculino. Minha adolescência foi muito conflituosa. Hoje, entendo que o fato de ser diferente não era exatamente o que me incomodava, mas sim o fato de ser excluída.
 
Notisul – Como era em casa?
Gabriela – Bem melhor do que na escola. Minha família é numerosa, muito religiosa. Eu participei de coral da igreja na adolescência, buscava qualquer coisa que pudesse estar com as pessoas e não sozinha. Por outro lado, justamente por causa da religião, buscava ser e agir da forma como as pessoas esperavam. Achava que meus pensamentos, meus sentimentos eram pecados. Eu nasci em um período em que tudo era proibido ou era pecado. Minha adolescência foi o período mais tenebroso da minha vida. Hoje, quando penso nisso, ainda não consigo entender como consegui sobreviver e me formar na faculdade. Sofri todas as humilhações que você possa imaginar. 
 
Notisul – Que tipo de humilhações? 
Gabriela – Na escola, não me chamavam pelo nome. Nas poucas vezes que alguém falava comigo, era: ‘ô viadinho, traz a bola’. No magistério, ouvi coisas de professores do tipo: ‘Como um viado vai ser professor? Como que um viado vai ensinar os outros?’. Aquilo me magoava de uma forma que ninguém pode ter ideia. Desde quando competência tem a ver com gênero? Com sexualidade? Mas tive forças para seguir adiante, não sei como. Acho que foi para mostrar que eu podia.
 
Notisul – Você disse que tentou viver como um homem, chegou a ter relacionamento com outra mulher?
Gabriela – Não, nunca tive nenhum tipo de afinidade sexual com outra mulher. O meu maior problema era que eu não me entendia e ninguém me entendia. É por isso que achava que era gay.
 
Notisul – Quando você assumiu sua identidade de mulher?
Gabriela – Eu achava que era gay até ver a Roberta Close na TV. Até então, meu mundinho era feito de homens, mulheres e gays. Comecei a perceber que os homens que se aproximavam de mim não eram gays, mas sim heterossexuais. Meus amigos, na maioria gays, diziam que eu nunca ficaria com ninguém porque era muito feminina e gay gosta de homem, não de mulher. E realmente era uma verdade. Minhas primeiras experiências amorosas começaram já no fim da adolescência. Quando eu tinha mais ou menos 19 anos, me assumi como Gabriela e comecei a me tornar mulher por fora. Por dentro, já era há muito tempo e não sabia.
 
Notisul – Como foi com sua família?
Gabriela – Eu sempre relutei em assumir que era diferente. Desde muito cedo, entendi que o mundo tem espaço para homens e mulheres. Os diferentes ficam excluídos. Minha mãe compreendeu: ‘Podes ser tudo que quiseres, mas só vou ficar muito magoada se um dia eu ver as pessoas rindo de ti’. Entendo o lado ela. É mãe. Só queria me proteger. Os pais, a mãe principalmente, reluta em aceitar o filho trans ou gay porque sabem que ele enfrentará o mundo para viver sua vida.
 
Notisul – Eles te chamam de Gabriela?
Gabriela – Não conseguem. No fim sai Gê, de Gesualdo. Mas não sei quem é este cara (risos). Eu os entendo. Eu cresci como homem. Então cresci como Gê. Para o restante do mundo, sou Gabriela (risos).
 
Notisul – Hoje ainda é difícil ser aceita?
Gabriela – Está mais fácil. Hoje, os gays são muito mais aceitos, estão muito mais incluídos do que as transexuais. Para nós, ainda existe um rótulo. Dificilmente, você vai ver uma trans ser balconista de loja, caixa de supermercado. Tem, mas são poucas. O mundo ainda nos exclui.
 
Notisul – Você não acha que este rótulo seja em função de que muitas transexuais são profissionais do sexo?
Gabriela – O movimento transexual no Brasil aponta que a maioria de nós não vive de prostituição. Na verdade, é que nestes espaços é onde mais encontra-se transexuais. As que conseguiram transpor as dificuldades passam batidas, passam como mulheres e são aceitas no meio em que vivem. Por isso aparecem menos.
 
Notisul – Você é aceita no seu ambiente de trabalho?
Gabriela – Em certo aspecto. Há uma certa relutância da equipe. Sou mais aceita pelos alunos. Eu não tenho registro feminino. Na identidade, sou homem. Muitos colegas não me chamam pelo meu nome social e isto causa certo constrangimento quando o aluno é novo e não sabe que sou transexual. A escola poderia ser mais inclusiva e cumprir o que determina a lei. Mas um dia chegamos lá.
 
Notisul – Não tem vontade de mudar seu nome?
Gabriela – Este ano, penso em dar entrada no processo. Confesso que já podia ter feito, mas isto é algo que, na verdade, nunca me incomodou. Hoje, existe a lei do nome social, um ganho imenso no país, no estado. Garotas transexuais não precisam mais sofrer as humilhações que eu sofri para frequentarem a escola. Também estimula que não deixem a vida acadêmica. Muitas transexuais são profissionais do sexo porque não conseguiram suportar as humilhações. Sem estudo, não conseguem emprego e precisam tirar o sustento das ruas. Além disso, a maioria delas também não é aceita pela família. Sou uma privilegiada neste sentido.
 
Notisul – Hoje você é vítima de preconceito?
Gabriela – Sim. Muito. Na minha escola, por exemplo, posso sugirir uma ideia mais interessante, mas levará muito mais tempo para ser aceita. A Gata nasceu em 2004. Desde então, eu queria fazer uma palestra aos professores. Sabe quando consegui? Ano passado. Não estou aqui me vitimizando não. Pelo contrário. Procuro seguir em frente. É preciso semear.