“Eles roubam a infância”

 

A psicóloga Bárbara Felisbino Vitoretti é coordenadora do programa de assistência e prevenção à violência da secretaria de saúde da prefeitura de Tubarão. Ela é formada há 14 anos na área, pela Unisul. Trabalha há 13 anos na prefeitura. Já atuou no aconselhamento de paciente portadores de HIV. Hoje, trata mulheres e crianças vítimas de violência. O programa iniciou na secretaria de saúde há dois anos.
 
 
 
Karen Novochadlo
Tubarão
 
Notisul – Como funciona o programa de assistência e prevenção à violência?
Bárbara – Eu recebo hoje uma demanda grande de crianças do Conselho Tutelar, vítimas de molestamento, agressão na escola, bullying. No ano passado, atendia mais mulheres.
 
Notisul – Como funciona o atendimento às crianças?
Bárbara – Primeiro, eu faço a entrevista inicial com o responsável, para saber o que aconteceu. Depois, eu faço o atendimento específico para a criança. Na primeira sessão, o menor entra com os pais. A criança sabe por que vem ao consultório. Quando é uma criança menor, eu trabalho com o lúdico. Quando é um adolescente, eu trabalho com os jogos e conversas.
 
Notisul – Imagino que o tratamento leve meses.
Bárbara – Sim, leva meses. Algumas crianças são mais abertas, mas muitas não conseguem falar no começo. No primeiro atendimento, não falam o que aconteceu. Depois, tenho sempre de questionar, até para verificar se a versão é verídica ou se houve imaginação. Acontece muitas vezes de os pais não aceitarem o fato. Muitos têm a ilusão de que criança inventou a história. 
 
Notisul – Qual é a dificuldade dos pais em denunciar as agressões?
Bárbara – Muitos têm vergonha. A partir do momento que vou na delegacia e digo que meu filho é vítima de violência, eu reconheço que de certo forma fiz vistas grossas na educação dele. É uma forma de admitir que eu errei, que deixei alguém se aproximar do meu filho e violentá-lo. Os pais pensam dessa forma. Eles acabam não denunciado e afastam-se do agressor. Tudo para não reconhecer o erro. Você pode afastar o seu filho do agressor, mas e as outras crianças? A denúncia ainda é melhor caminho.
 
Notisul – Qual o comportamento que uma criança vítima de violência apresenta?
Bárbara – Ela muda o comportamento. Ela pode ficar mais apreensiva, agressiva, ter um sono mais agitado, um apego maior com o agressor. Na cabeça da criança, não existe uma maldade. Você chega para uma criança com um doce, uma bala ou um brinquedo, e tudo mostra que gosta dela, você alicia o menor. Quando os pais descobrem o abuso e tiram a criança do contato com o agressor, ela não entende o porquê. Na cabeça da criança, ele fazia bem para ela, com carinho e afeto. Temos que mostrar o que é errado.
  
Notisul – Existe alguma idade em que seja mais comum sofrer este tipo de abuso?
Bárbara – Eu atendo mais casos entre 8 e 9 anos. É uma idade em que se começa a entrar na puberdade. Os casos têm mais ou menos o mesmo padrão. São mães separadas, com o segundo parceiro, que tenta se aproximar da criança. A mulher começa a perceber a alteração no comportamento do filho, que fica mais apreensivo na presença do agressor. As mães começam a observar e questionar, até que as crianças abrem o jogo. Em um caso que atendi, o menino entrava em sites pornográficos, incentivado pelo padrasto. Não houve molestamento, mas já ocorria um aliciamento. Mas o normal é a criança não contar, até porque existe a chantagem emocional. ‘Se contar para o pai ou para a mãe, não vou te dar mais um brinquedo, um doce, não vou mais brincar contigo’. O agressor também ameaça matar o pai, a mãe. Nestes casos, a criança não se apega ao agressor. 
 
Notisul – Quando a criança cresce, que tipo de adulto torna-se?
Bárbara – Se o tratamento não for bem elaborado, pode tornar-se um adulto muito retraído, não ter relacionamentos sadios, pode procurar perfis violentos. Pode não querer se relacionar com ninguém e não desenvolver o lado afetivo. 
 
Notisul – Como é o rendimento escolar destas crianças?
Bárbara – Uma que eu atendo o rendimento caiu bastante. Outras conseguem manter as notas na média. A relação com os amigos não é a mesma. Elas desconfiam um pouco mais.
 
Notisul – Os pedófilos podem ser consideradas pessoas doentes e que precisam de tratamento?
Bárbara – Sim. Eles precisam de tratamento. Para eles, o que fazem é normal e não faz mal nenhum. Mas eles roubam a infância da criança. Não permitem que tenham as fantasias. A criança tem que passar por esta fase da brincadeira, do lúdico, de conhecer as coisas. Isso tudo é quebrado quando o pedófilo comete o abuso. 
 
Notisul – A criança pode entrar no mundo das drogas, álcool, quando fica adulta?
Bárbara – Sim, pode. Ou até mesmo se tornar um agressor. Ela pode aceitar que esta realidade é a correta.
 
Notisul – Você disse que também trabalha com a questão do bullying. Como são esses casos?
Bárbara – São agressões de crianças. Um paciente foi agredido dentro da sala, na presença da professora. Os coleguinhas bateram nele porque não quis mexer no material da professora que estava em cima da mesa. As crianças fizeram um círculo e deram socos. Ele ficou com uma cicatriz no rosto. Meu outro paciente sofreu uma agressão parecida na hora do recreio.
 
Notisul – O que acontece com uma criança que sofreu este tipo de agressão se não passar por tratamento ou os professores não intervirem?
Bárbara – Geralmente, quando uma criança não tem um problema resolvido, ela não quer mais ir a escola. Ela não quer ir para lá para apanhar. Pensa que a professora e a diretora não fazem nada. Não quer falar com ninguém. 
 
Notisul – Não adianta os pais trocarem a criança de sala de aula?
Bárbara – Às vezes, resolve, mas está apenas negando o problema, que continua ali. Meu filho deixa de ser vítima, mas o filho de alguém será.
 
Notisul – Não adianta então tratar apenas a criança que sofre bullying? Tem que tratar o agressor?
Bárbara – Se tratar apenas a vítima de bullying, trato apenas os sintomas e não a doença. Temos que tratar todo o sistema que gera isso e a possibilidade para que aconteça. Tem que ser feito um trabalho dentro da escola, o agressor também tem que ser punido. Muitas vezes, o professor também tem medo do aluno, mas ele precisa denunciar, ser pulso firme e suspender a criança. Não adianta passar a mão na cabeça. É o mesmo que dizer que pode bater.
 
Notisul – Como você se sente em relação ao trabalho que desempenha para essas crianças? Como é ver essas criança voltarem a sorrir?
Bárbara – É uma sensação boa e de dever cumprido. Não há nada que pague isso, ver uma criança melhorando, sorrindo. Ou ver a criança encolhida no campo. Tem uma hora que a gente vê que a criança está melhorando e interrompemos o tratamento. 
 
Bárbara por Barbára
Deus: Tudo. 
Trabalho: Crescimento.
Família: Suporte. 
Passado: Aprendizado.
Presente: O agora.  
Futuro: Expectativa. 
 
"Geralmente, os agressores são dóceis. Você olha para eles e não diz que são pedófilos. Eles são pessoas que convivem no nosso meio e a gente não desconfia. Esse é o maior perigo da pedofilia. Achamos apenas que são carinhosos com o nosso filho, gostam de crianças, são prestativos. Primeiro, eles tentam conquistar a confiança dos pais. Eles mesmos dizem que é fácil conquistar a confiança".