quinta-feira, 25 abril , 2024
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Léo Rosa de Andrade

Bolsonaro não gosta do meu filme

Há um um filme na Netflix: Gostos e Cores. Produção francesa, direção de Myrian Aziza. Em inglês: To each, her own. Adapto ao português: Ela inteira para cada um. Assim fica melhor expresso o que o enredo propõe: alguém pode envolver-se afetivamente com pessoas diferentes sem dilacerar a própria existência.

Já a “proposta” central do filme, pois, está fora dos conceitos predominantes. Contudo, o “grave” na película é que toda a narrativa está fora dos padrões “aceitáveis”. O intolerável, no filme, é explicitado mesmo no seio de comunidades supostamente libertárias, dadas as suas condições “alternativas”.

A personagem principal compõe uma família judia tradicional que abriga, dentre três, um filho e uma filha gay. O filho gay censura a infidelidade da irmã à sua “esposa”. A “esposa” sente-se traída quando a “mocinha” namora um homem. O homem, um masculino politicamente correto, sente-se sexualmente usado.

O sujeito não é um francês convencional, branco, cristão. Trata-se de um negro senegalês muçulmano. Sua mãe o quer casado conforme a tradição, por arranjo de famílias. Seus amigos suspeitam da mulher branca e judia. O casal peca por tão só relacionar-se, e peca mais, comendo salame (carne de porco).

Se quem me lê nutre algum preconceito (sentimento geralmente hostil fundado em equívocos conceituais hauridos do senso-comum circulante) seguramente vai encontrá-lo revelado, contrastado e denunciado no correr do filme: religião, tradição familiar, sexismo, possessividade, racismo, chauvinismo. Bolsonaro não gosta do meu filme. Nele não há Superação, o milagre da fé, o filme de Bolsonaro. No meu filme há gostos e cores: todas as coisas se podem tentar. Ele não enreda legitimação, nem aos feudos mentais da direita boçal, nem aos devaneios imaginativos prenhes de autoritarismo de certa esquerda.

Bolsonaro quer afastar o Brasil do pecado. Ora, como é possível a vida sem pecado? O estar proibido pelos mandamentos religiosos não significa não existir. Por que existe? Porque é possível, porque nada é determinado, porque há liberdade (Kierkegaard). Há consequências, mas isso é outra coisa. Justiniano imperou sobre a banda do mundo em que vivemos de 527 a 565. Morreu em Constantinopla, cidade que leva o nome de Constantino, outro imperador (306 a 337), instaurador do catolicismo e editor da Bíblia (concílio de Niceia, 325)  – o “povo”, um dia, acabará sabendo dessas coisas, espero.

Um como o outro, com o poder do Império Romano, fizeram das suas as vontades gerais: “Ou é católico, ou está morto”. Constantino impôs a crença católica como única. Justiniano aprofundou o controle sobre a moral e sobre os prazeres do corpo. A Tradição Ocidental estava sob a sua vontade. Teodora, a imperatriz, inspirava Justiniano. A mulher que governava a par com o imperador fora bailarina circense e prestara serviços sexuais. Vivera os prazeres da vida, “desregrara-se”. Um dia Teodora morreu. Justiniano sofreu. Que Roma sofresse com ele: todos os locais em que se risse foram fechados.

Uma causa de amor de um déspota. Já, nós, estamos sob a causa ideológica de uma mentalidade esbirra. Bolsonaro quer fechar os locais em que se pensa. Ele supõe que certos saberes desenvolvem inteligência à esquerda. A ele interessa que muitos lugares produzam ignorância à direita. Não que à direita falte inteligência. Refiro os toscos: Bolsonaro quer restringir o ensino de Ciências Sociais e Filosofia porque imagina que aí estão os “comunistas”. Ora, alunos de Humanas são cerca de 1% das Federais. Ademais, estudantes de Exatas voltam-se igualmente à resolução de problemas da Sociedade. A birra de Bolsonaro é ideológica: modo de pensar, de viver. Se é isso que pensa e vive, será desse modo que Bolsonaro governará. Desafortunadamente, a Bolsonaro não falta coerência. Ele está conforme o prometido em campanha. Ele é isso. Talvez seus eleitores mudem de ideia. Ele não. Veja-se:

“A linha mudou, a massa quer respeito à família. Eu tive uma agenda conservadora, defendendo a maioria da população brasileira, seus comportamentos, sua tradição judaico-cristã” (sobre comercial do Banco do Brasil que tem jovens negros, brancos, cabelos coloridos, tatuagens) (https://glo.bo/2WcFG08). Felizmente, a livre iniciativa é menos conservadora: “Contra a maré – Ao censurar uma propaganda do Banco do Brasil protagonizada por atores que representam diversidade racial e sexual, o presidente Jair Bolsonaro tira a instituição financeira de uma tendência já consolidada no mercado publicitário.

Só nesta semana, agências como a Young & Rubicam, a Ogilvy e a AlmapBBDO soltaram peças que abordam violência contra transexuais, meninos brincando de boneca e presença de mulheres em profissões com baixa representatividade feminina” (Cunha, J, FSP, 27abr19). Estamos em guerra ideológica.

Bolsonaros prestigiam certas disciplinas. Certo, elas são mesmo importantes. Alguns, contudo, queremos elas e outras não menos necessárias: “Não lemos e escrevemos poesia porque é moda. Lemos e escrevemos poesia porque fazemos parte da raça humana. E a raça humana está impregnada de paixão.

Medicina, Direito, Administração, Engenharia são atividades nobres, necessárias à vida. Mas a poesia, a beleza, o romance, o amor, são coisas pelas quais vale a pena viver” (Sociedade dos Poetas Mortos – Tom Schulman, roteiro, Peter Weir, direção). E nos são imprescindíveis as ciências que pensam a Sociedade.

Simon Schwartzman: “A pesquisa social no Brasil lida com questões fundamentais, como pobreza, desigualdade, emprego, violência, saúde pública, demografia” (Saldaña, P, Gamba, E, FSP, 27abr19). Para a mentalidade bolsonara, tudo isso é “caso de polícia”. A diversidade do meu filme diz que EleNão.

FORMAS DA HUMANIDADE

Há muitos prazeres no mundo. Eles se me adentram pelos meus sentidos. Não há prazer sem visão, audição, paladar, tato ou olfato. São meus sensores: captam a realidade e a conduzem ao meu cérebro. Mas o meu cérebro faz mais do que perceber o mundo: ele o interpreta.

Uma galinha tem os mesmos sentidos que eu tenho. Nisso somos iguais: humanos, galinhas, a bicharada. Qual a diferença? Uma diferença de condição gerou uma diferença de resultado. O cérebro humano primitivo (reptiliano) não é mais do que um cérebro de galinha.

Mas ao cérebro primitivo se foram, pelos milênios, sobrepondo camadas, até surgir o complexo e poderoso cérebro humano. Se retirarmos as camadas superiores, encontraremos um cérebro muito antigo que cuida de nossas funções vitais, equivalente ao da galinha.

Esse cérebro primitivo comanda as nossas reações “animais” (ou instintivas), que são iguais às reações de uma ave, um animal primitivo. Exemplo: se algo assusta uma galinha ou um humano, ambos os animais entram em síndrome de emergência de Cannon.

Essa síndrome é uma resposta do sistema nervoso autônomo. As pupilas se dilatam, os músculos de fuga ou luta recebem mais sangue, o coração acelera, a pressão sobe, o pulmão se expande, mais glicose, coagulação rápida, metabolismo celular intenso, pelos eriçados. Pura natureza.

Mas, em seguida, começa a diferença: a galinha só reage, não administra a reação; à salvo, esquece o ocorrido. O humano analisa o acontecido, faz contas. O humano, passado o susto, em boa medida, pode gerenciar as condições primitivas de seu cérebro.

 Se somos – e somos – todos animais, somos um animal com esse plus. Essa tanto a mais que caracteriza o humano – esse apanágio da humanidade – é o que me importa: o humano pode ser educado e, alcançado certo patamar de educação, pode educar-se a si mesmo.

Uma galinha não consegue dar-se mais do que é; seu cérebro limitado delimita-lhe a condição de galinha. A evolução humana nos fez “ilimitados”. Podemos tanto que parece que nosso cérebro não tem linhas de demarcação. Um humano pode dar-se condições além das genéticas.

Mas – curioso – muitos humanos não se dão humanização. Postos no mundo, não são tocados pela Civilização. Bestamente vivem a vida em termos menores do que a vida permite e pede. Outros humanos, contudo, transcendem essas condições: esses humanos fazem a humanidade.

Há a humanidade como espécie: pura evolução. Há a humanidade como invenção da cultura: produção da História. Como espécie, somos todos iguais. Historicamente, as instituições que inventamos já nos declararam todos – e por isso alguns lutamos – em condições de igualdade.

Contudo, é inegável uma diferença (evito valorar) entre humanos. Nas boas ou nas más injunções do mundo, próximo da produção intelectual mais sofisticada ou longe dela, há quem esteja atinado diante de tudo e há quem não perceba nada. Há quem não se engaje na humanidade.

Exemplo: a curiosidade pela ciência ou o tocar-se pela arte. Claro, a explicação das coisas ou a expressão artística não sensibilizará uma galinha. Normal. Só que – aí é que está busílis – a sofisticação da ciência ou o sensível da arte também não tangem boa parte da humanidade.

Como se estabelece a distinção? Não sei. Não sei se alguém sabe. Sei que está em voga um relativismo cultural que recusa essa distinção que faço (dane-se o politicamente correto).

Recupero a afirmação: há humano como espécie; há humano comprometido com a humanidade.
Estou seguro de que todos temos um espaço enorme no cérebro a ser ocupado pelo melhor do que já realizamos. O cérebro humano é grandioso no sentido de ter muitas capacidades, todavia não cuidamos de lhe ofertar o suficiente, não atendemos a sua grandiosidade.

Limites da existência, determinações materiais. Isso, de fato, nos circunscreve a todos, mas não explica tudo. Muitos, mesmo no que podem, não se fazem a si, não se empurram para o ilimitado. Se alguns vão além de tudo, outros ficam galinha, boa parte contenta-se pela metade.

INVEJAS

Você já se apanhou desejando algo ou alguém? Esse algo ou alguém vagava pelo mundo, sem dono ou sem ninguém? Porque, se tinha dono ou envolvimento, você irá para o inferno, por prática de um pecado capital. Na tradição religiosa, isso é inveja, e é considerado pecado, porque a pessoa está ignorando suas próprias bênçãos (o status que a divindade lhe deu) e priorizando as do alheio. Para o cânone cristão, o invejoso abandona o seu crescimento espiritual, voltando sua aplicação para fora de si.

O Houaiss define inveja assim: “1. desgosto provocado pela felicidade ou prosperidade alheia; 2. desejo irrefreável de possuir ou gozar o que é de outrem.” O Dicionário Técnico de Psicologia (Cabral, A e Nick, E), Cultrix, traz o seguinte conceito: “Sentimento inconfortável que é estimulado pela consciência de que outra pessoa tem o que desejamos, mas que nos falta.” Eu diria que essa é uma forma doentia de inveja. Essas definições desdobram-se da tradição religiosa. Inveja igual a pecado.

A Wikipédia é mais abrangente, mas fica na linha da inveja como coisa feia: “Inveja ou invídia é um sentimento de aversão ao que o outro tem e a própria pessoa não tem. Este sentimento gera o desejo de ter exatamente o que a outra pessoa tem […] e de tirar essa mesma coisa da pessoa, fazendo com que ela fique sem. É um sentimento gerado pelo egocentrismo e pela soberba de querer ser maior e melhor que todos, não podendo suportar que outrem seja melhor.

Os indivíduos disputam poder, riquezas e status. Aqueles que possuem tais atributos sofrem do sentimento da inveja alheia dos que não os possuem, que almejariam ter tais atributos. […] Numa outra perspectiva, a inveja também pode ser definida como uma vontade frustrada de possuir os atributos ou qualidades de um outro ser, pois aquele que deseja tais virtudes é incapaz de alcançá-las, seja pela incompetência e limitação física, seja pela intelectual” (com edição).

Desejo oferecer uma compreensão alternativa a essa tradição. De fato, a inveja pode ser uma coisa perniciosa, mas não necessariamente. Distingo três tipos de inveja: 1. a típica: quero algo que o outro tem e envido meios de me apropriar desse algo; 2. a maléfica: quero, sem chance, algo que o outro tem, então desejo que o outro deixe de ter esse algo; 3. a cobiça: eu quero, também, algo que o outro tem, mas não quero precisamente o algo do outro (conceito de Leandro Karnal, que diferencia cobiça de inveja https://bit.ly/2Ind0gO).

Nas duas primeiras eu me entristeço com a felicidade do outro. Na segunda, particularmente, eu desejo que o outro se dane: tento diminuir a glória do próximo, “exultando pela sua adversidade”; se não obtendo meu propósito, sofro “aflição pela sua prosperidade”. “Sendo a inveja uma tristeza pela glória do outro, considerada como um certo mal, segue-se que, movido pela inveja, tenda a fazer coisas contra a ordem moral para atingir o próximo e, assim, a inveja é vício capital” (Sobre o Ensino, Tomás de Aquino).

Contudo, quanto à cobiça, ela tem movido a humanidade. Vemos as coisas ou as qualidades próprias de outra pessoa e, muitas vezes, as posses ou os predicados que vimos se convertem em nosso objeto de desejo, ou “sonho de consumo”. Isso ocorreu em todos os tempos e acontece em todos os lugares, em todos os aspectos, em todos os “níveis” da condição humana. Pois não é isso, exatamente, que nos leva ao telefone novo, ao carro atual, à busca do corpo “sarado” ou da condição intelectual destacada?

Os desiludidos com a época presente associam qualquer inveja, a cobiça inclusive, a esse “capitalismo selvagem que está aí”. Bulhufas! Disputar poder e riqueza, almejar a posição dos bem situados, buscar as coisas boas do mundo, isso tudo vem de tempos imemoriais. Cobiçar, mesmo invejar, é comparar, é querer mais, é querer melhor. Todos – talvez não contra alguém, mas a nosso favor – já cobiçamos (ou invejamos). Quanto a mim, acrescento: prezo que muitos me invejem; escolho poucos para invejar.

EM DEFESA DO TEMPO PRESENTE

Émuito comum ouvir-se a expressão “hoje em dia”. No mais das vezes se a usa para desmerecer a época corrente, afirmando-se que atualmente as coisas – todas e quaisquer coisas – são piores do que no passado.

Então, conclui-se sem a devida reflexão: hoje em dia somos mais “dinheiristas”, mais interesseiros, mais insensíveis. Hoje em dia não temos valores. Hoje em dia nem mesmo se pode confiar muito nos outros.

São afirmações equivocadas, sem perspectiva histórica. Hoje em dia o mundo é extremamente melhor do que foi no passado. É mais solidário socialmente, é mais confortável individualmente.

Gente de mau caráter houve e há. Não é pouca no presente, não foi escassa no passado. Tolos, igualmente, existem de sobra, mas o pretérito também não foi econômico na oferta de curtos de entendimento.

A natureza humana mudou pouco – se mudou alguma coisa –, não obstante os discursos moralistas de direita, que veem degeneração no avanço dos tempos, e de esquerda, que asseveram o crescimento da injustiça.

O que está inteiramente diferente são os ambientes privado e social em que os humanos vivem. E eu diria que, felizmente, estão totalmente diferentes. Estão muito mais francos e generosos. Estão mais “descontrolados”.

Não se analisa a vida contemporânea com facilidade. É difícil falar da época atual com isenção, porque ele incide sobre a nossa consciência e compõe nossos meios de compreensão, contagiando nossas conclusões.

Arrisco-me, todavia, a levantar argumentos em favor da contemporaneidade. Sem desprezar as misérias do mundo – tantas e tão tristes –, ouso afirmar que vamos relativamente mais confortáveis, moral e materialmente.

Longe de mim declarar o “fim da História”, mas, estudando-a, sei que temos mais liberdade de posição pessoal, mais meios de conforto físico e mais conhecimento à disposição de um número crescente de pessoas. 

Conhecimento acera o curioso; ele aprende, ainda que aprender doa. Saber faz questionar o mundo, desprende das verdades religiosas e ideológicas. Sem verdades explicativas, pensa-se, mesmo que pensar angustie. 

Comodidades nos proporcionam tempo, permitem divertimento. Desafeitos ao uso do tempo e um tanto angustiados pela falta de explicações para o mundo, muitas vezes nos extravasamos na diversão; nos excedemos.

Menos censura, mais excesso. O excesso é perdulário da própria vida, mas é erro reparável para quem o errar educa. Resta menos mal, de toda forma, o exceder-se que a submissão ao autoritarismo privado ou público.

Conhecimento, tempo e conforto dão liberdade. Liberdade provoca incertezas. Se não me dizem aonde ir, eu tenho que decidir. Se as religiões e as ideologias são confrontadas pelo saber, eu estou solto das rédeas da tradição.

Eis-me, assim, num mundo sem respostas. Cabem-me as perguntas. Cabe-me respondê-las. Tenho que lidar comigo com minha luz própria. Luz própria pede conhecimento, que pede esforço para conhecer.

O mundo está menos complicado, mas está mais complexo. É mais difícil. Agora, contudo, eu posso; antes eu não podia. Hoje há possibilidades ao meu alcance; antigamente nem era permitido buscá-las.

As circunstâncias da sociedade de consumo são avassaladoras. Se não nos precatamos, elas nos tragam. De fato, elas fascinam, mas, pelo andar da História sempre houve o seduzimento dos tolos de hábito.

Sem desconsiderar as armadilhas do “sistema”, entretanto, insisto: no tempo presente o indivíduo tem seu valor. Quem se atina e recusa o facilitário banal reciclado tem mais e melhor com que viver a vida.

EDUCAR É SEDUÇÃO

Nós todos nos convencemos de que nossas atitudes são o melhor que podemos dar de nós mesmos. Aceitamos que fazemos o justo e o necessário e nos pretextamos com processos de defesa do ego em prol de nossos feitos, por mais condenáveis que eles sejam.

E não somente nos explicamos, pois uma explicação poderia ficar exposta a um argumento em sentido contrário, ao qual nossa consciência supostamente se oporia, mas que, com alguma honestidade ouviria; nós nos justificamos, nos damos por certos e nos permitimos nos repetir.

Ora, sabemos perfeitamente que quando chegamos ao pondo de nos tornarmos agressivos, estejamos diante de um adulto ou de uma criança, seja aos tapas, seja aos berros, estamos assim procedendo apenas e simplesmente porque nossa paciência chegou ao limite.

Sim, é perfeitamente normal explodir em determinados momentos, mas, cá pra nós, explodimos em defesa do nosso alívio, não pelo bem do próximo. Isso também vale para a nossa relação com os filhos. E até vale mais, dada a situação de vulnerabilidade das crianças.

Grita-se ou se espanca os filhos para o próprio conforto, para interromper o que irrita, embora alegue-se prestativa severidade educacional. Explodiríamos porque seríamos magnânimos. É mentira, nós nos passamos de nós mesmos apenas porque perdemos a compostura.

Nesses modos primitivos de educar há dois sujeitos que têm o que dizer. Tenho-os, contudo, não como especialistas em educação, mas em adestramento. Burrhus Skinner desenvolveu o Condicionamento Operante, um procedimento para modelar respostas em um organismo.

 Respostas premiadas tendem à repetição; punidas, tendem a eliminar o comportamento. Fixa-se o Comportamento Operante. Antes de Skinner, Ivan Pavlov trouxe o conceito de Comportamento Respondente, uma reação fisiológica a um estímulo, ou agradável, ou desagradável.

Trocando esses conceitos já bem simplificados em miúdos, pode-se dizer que Skinner obtinha comportamentos com premiações; dado o prêmio, o organismo tendia a repetir o comportamento. Plavov, digamos, censurou comportamentos por punição.

Um e outro, com repetição consistente de experimentos, conseguiam criar ou remover respostas comportamentais. Sem engano, contudo: de resposta a estímulo não resulta consciência, mas comportamentos reflexos; reflexos são respostas decorrentes de estímulos, não de vontades.

Que isso quer dizer? Bem, não havendo vontade autônoma, mas resposta por reflexo, não há deliberação, não há eleição moral. Haverá respostas adaptativas; não serão escolhas. Não havendo postura estimativa diante de valores subjetivados não existirá liberdade humana.
 
Para uma criança, pancadas e gritos são um estímulo desconfortável, e esse desconforto provavelmente provocará resultado. Uma criança acaba, de fato, desistindo de uma atividade qualquer se receber palmadas ou um brado ríspido. Ela, no entanto, estará sendo adestrada, não educada.

Educar não pode ser adestrar por desconforto, mas levar a escolhas por persuasão. Socorro-me do Houaiss: Persuasão: “convencer (alguém) da necessidade ou conveniência de; levar alguém a mudar de atitude; conduzir a uma solução ou situação convincente, satisfatória”.

 Ao se lidar com uma criança – que, sim, está nos limites de discernimento de uma criança –, claro, cabe construir estratégias de comunicação em que mais se lance mão de encantamentos do que de lógicas pretensamente racionais. A uma criança se envolve com “recursos” da vida lúdica.

Mas criança pensa, e desde cedo confere seus “interesses”. Então, já persuadindo-a do melhor, já dissuadindo do pior, mais fazê-la duvidar da adequação do seu comportamento do que simplesmente interditá-lo. Educar conjuga pouco com hostilidade, carece de sedução.

Nada será como antes amanhã?

Listo-me entre os descontentes com o último resultado eleitoral. Talvez, todavia, eu tenha uma vantagem pessoal sobre muito revoltado de mídia social. Sei que estou derrotado; sei que desejo outra mentalidade no Poder. Não estou conformado; reconheço dado da vida política.

Sei a direção que tomarei; não sei o que encontrarei no que advirá. De toda sorte, se desejamos outros modos políticos, devemos considerar sobre nós mesmos e sobre nossa relação com a Sociedade.

Primeiro, um aspecto primitivo que nos compõe: conferindo Partidarismo e o cérebro, de Suzana Herculano-Houzel (FSP, 26abr16), veremos que somos a favor ou contra determinadas orientações partidárias apenas porque estamos com certo “alinhamento” estabelecido no cérebro.

“Institivamente” defendemos nossa turma por senso de pertencimento, e atacamos os adversários, inclusive quando corretos, por estranhamento. Não contrariamos outra ideia, mas outro bando.

Depois, somos movidos por formatações ideológicas. Modos de pensar o mundo constituem nossa subjetividade. Pensamentos semelhantes têm maior chance de aproximação recíproca, formando estratégias de sobrevivência.

E estamos em rede. As iras políticas nossas de cada dia são “compartilhadas’’. Há uma armadilha embutida nisso. Por exemplo, o Facebook: ele é programado para não confrontar, mas para agradar. Então, perfila o utente e lhe devolve o seu próprio gosto, formando uma “bolha” de iguais.

Por “instinto”, ideologia ou implicação de rede social, o coxinha “sensato”, praguejado de fascista, ou o mortadela “esclarecido”, insultado de esquerdopata, está apenas ajuntado com os seus semelhantes e repetindo os lugares comuns de suas fórmulas interpretativas da vida.

Às vezes, as vociferações moralistas são simples desonestidade intelectual: esquerdopatas acusam Temer de compor seu ministério com 7 “investigados”; fascistas lembram que 19 compunham o governo Dilma. Uns e outros reduzem moral pública a aritmética criminal.

Será que os brasileiros podemos dar conta de nós? Podemos dar conta e rumo a essas circunstâncias difíceis e raivosas pelas quais estamos passando, apesar de estarmos inseridos nelas?

Desconfio dos que se reduzem às suas convicções. Então, ponho-me a questão de outra forma: dado que a complexidade das relações de poder não será capturada por essa contenda chinfrim, quem terá autoridade legítima para fazer andar o Brasil?

A prática política, com qualquer qualidade ou por qualquer meio, há de funcionar suportada por persuasão. Se não persuado o outro, não obtenho autorização. E se o engano, os fatos futuros me denunciam.

Nos últimos tempos houve muitas mentiras, muitos gritos de “fora…”, muita agressão. Não funcionou, não funcionará. O Brasil foi e continuará sendo um reflexo dos brasileiros. Nem mais, nem menos.

A vida pública brasileira está, por ação ou omissão, como a fizemos estar. Estará melhor se for melhorada pelos dispostos a se legitimar para tanto além das margens do bando, da ideologia compartilhada, das afinidades logarítmicas. Ou tudo será como antes amanhã.

Tubarão: o IPTU, o reparo do passado, a promessa de futuro

Os acontecimentos que se repetem no cotidiano se normalizam. Até mesmo transformações de grande porte, se acontecem aos poucos, perdem o impacto da surpresa; quando ficam prontas, ainda que bonitas e destacadas, se nos parece que já estavam na paisagem.

Tenho ficado bastante ausente de Tubarão, então, nos momentos de retorno, deparo-me com modificações importantes, com obras relevantes, com recuperação de áreas degradadas por longo descuido. São redesenhos da paisagem urbana que dão graça e porte à cidade.

Estou elogiando a atual administração? Prefiro dizer que reconheço fatos com olhos de querer ver. Se for necessário um exemplo, vejam-se nossos acessos à cidade: antes, chocavam visitantes; agora, confortam a quem nos visita e, sobretudo, confortam a nós mesmos.

Sobre o futuro, creio que as duas maiores marcas da administração Ponticelli serão a drenagem do bairro Dehon e a travessia do Pirituba, com o prolongamento da Avenida Tancredo Neves. Eu lhe tenho sugerido com insistência uma terceira: que arborize toda a cidade. Torço para que o faça.
Essa última obra desdobrará Tubarão para uma larga área aberta. Se houver bom plano de urbanização e paisagismo adequado, teremos uma readequação da cidade e um cartão postal do qual nos orgulhar.

A respeito do resgate de obrigações do passado as quais Tubarão deixou de cumprir, o pagamento de precatórios (na prática, dívidas judicializadas do Município) começaram a acontecer, tirando o nome de Tubarão dos cadastros de “nomes sujos”.

Como qualquer devedor, uma cidade que não esteja com as contas em dia fica complicada na iniciativa de seus negócios, recebe veto para tomar empréstimos, obter financiamentos, realizar parcerias que nos beneficiariam.

As dívidas herdadas são decorrentes de processos originados desde os idos de 1982, somando, em janeiro de 2017, R$ 36.888.591,42. Foram pagos, na atual gestão, R$ 26.888.804,90, mas falta quitar R$ 19.790.444,05, considerando juros e correção monetária.

Para efeito de comparação de valores, veja-se que o Orçamento total anual da cidade (2019) é de R$ 310.000.000,00; o da Educação alcança R$ 98.338.000,00; o da Saúdo atinge R$ 61.148.424,04.

Note-se o quanto tivemos que nos espremer para o resgate do nome da cidade: as nossas obrigações passadas somam mais de um terço de tudo o que gastaremos com Educação ou mais da metade do total de gastos com Saúde em um ano inteiro.

Não obstante a triste herança, o futuro nos espera alvissareiro. Os fatos que me alimentam essa esperança estão à vista. Com recursos próprios e com recursos de convênios com o governo estadual (possíveis depois de a cidade estar em dia com suas obrigações), Tubarão está sendo transformada para melhor.

O cidadão pode conferir a competência do gestor municipal ao andar pela cidade. Há, contudo, direitos e deveres. A cidade se desenvolve sobretudo com os recursos oriundos do IPTU (quase um terço do Orçamento). É obrigação nossa estar com os tributos em dia. Tubaronense, vai lá, faz a tua parte.

A SOLIDÃO DO MENTIROSO

Dizer-se o que não é exatamente o que se acredita que seja. O nome disso é mentira. Formulei este conceito para poder excluir compreensões distorcidas por transtornos de qualquer ordem que alcancem alguém.

Se, por motivos emocionais, eu desvirtuo os fatos, de maneira a contornar desconfortos insuperáveis, não estaria mentindo, pois me encontraria pressionado por consternações emocionais invencíveis.

Mentir, então, é mentir mesmo, é não dizer a coisa como se sabe, ou honestamente se supõe, que ela é: aumentar, mitigar, distorcer, suprimir, acrescentar, escamotear etc., como ato deliberado, induzindo a erro.

Há casos em que a mentira é perfeitamente legítima. O exemplo extremo é o do judeu que negava sua etnia a um nazista, simplesmente para não ser morto. Mas há coisas mais singelas, que, igualmente, legitimam a mentira.

 Se pais autoritários cerceiam exageradamente o ir e vir da filha, não se pode condenar o ‘‘vou dormir na casa da amiga para estudar’’, e, de lá, o ir para as festas que a vida oferece, às quais a menina tem direito.

Existe a mentira misericordiosa, dita, talvez indevidamente, ao doente, ou à pessoa não tão bem vestida assim. Há, inclusive, a regalia de mentir: ninguém é obrigado, ao depor em juízo, a produzir prova contra si.

Mas, e a mentira gratuita? Aquela que não é transtorno ou misericórdia, nem é legítima. Não creio que haja um mentiroso sem necessidade psicológica de sê-lo. Uma necessidade, contudo, explica o mentiroso; não o justifica.

Ninguém pode meramente atender suas necessidades, desconsiderando os danos emocionais e de relacionamento que causa ao seu redor. Uma necessidade não é, forçosamente, insuperável. Talvez, se pedir ajuda…

Quem mente tem que optar entre as amarguras de saber-se um mentiroso e as dores de encarar uma verdade que lhe seja difícil. A própria decisão de optar é aflitiva. Mas, quem pode viver sem enfrentar opções?

O mentiroso mente, antes de tudo, para ele mesmo. Auto-engana-se de que enganou o próximo. E não tem muita vergonha de mentir. Se tivesse, não mentiria. E não é exatamente de ser descoberto que tem medo.

Ao mentiroso apavora-lhe é que se lhe descubra a verdade. Envergonha-se de algo escondido: simplesmente, a verdade. Esta verdade, normalmente, o envolve. O mentiroso tem vergonha da verdade em que está envolvido.

 Então, ele cria uma realidade mentirosa e tem que sustentá-la com outras mentiras. Isto não lhe é confortável, mas menos confortável é a realidade que deseja esconder. Cria um mundo vicioso de mentiras e vai morar nele.

Este mundo é construído sobre mentiras indulgentes, pregadas para si mesmo. O mentiroso se convence de que está convencido (no fundo, não está) de que mente para o bem da vítima, ou de que prega a última mentira.

O mentiroso, em momentos de verdade, está só: ele sabe que os outros sabem que ele está mentindo e que ele não vai parar. Na vida, quem mente vai sendo desmoralizado, vai se desmoralizando, vai se desmoralizar.

Não deve ser confortável levar a existência deparando-se consigo falsificado por si mesmo. “Fiz questão de esquecer Que mentir pra si mesmo É sempre a pior mentira” (Legião Urbana, Quase sem querer).

Os amigos do mentiroso devem-lhe duas coisas: um espaço afetuoso, que lhe abrigue a verdade escondida, e uma reclamação: que pare de mentir. Tolerá-lo sob suspeita é fazer-lhe mais mal do que o mal que ele faz a si.

Ideologia, pense nisso

Se uma mulher que vive no mundo muçulmano desejar tomar banho de mar, poderá fazê-lo, mas sob panos, completamente encoberta. Essa mulher não faz contas sobre o significado do seu vestir, apenas veste completamente seu corpo. É, ou parece-lhe ser, da “natureza” das coisas.

Uma brasileira considerará essa situação absurda. Aqui a mulher vestirá sua calcinha e seu sutiã e irá livremente à praia. A brasileira, igualmente, todavia, não refletirá sobre o vestir-se. Vestir-se-á e ponto, como se seu traje fosse o do mundo.

Uma muçulmana característica dificilmente terá condições de questionar as razões de seus trajes. Já qualquer brasileira comum poderia discutir os motivos dos seus, mas apenas uma que outra o fará. A brasileira convencional trajará o que for moda; não matutará sobre aderir ou não ao que “se está usando”.

Na maior parte das praias europeias basta a calcinha. O sutiã é repressão já não aceita. A maioria das europeias típicas tem uma posição crítica sobre sua relação com os trajes, de praia ou não: sabe exatamente o que usa e decide sobre suas vestes conforme sua vontade, não se submetendo, nem à tradição, nem à moda.

Que força move essas mulheres a se comportarem como tradição, ou como moda, ou como vontade? Se dissermos que assim é porque há religião e machismo no mundo muçulmano e restos de machismo e de religião no Brasil, estaremos corretos.

Mas, então, caberia novamente indagar: que força move as pessoas a se comportarem por códigos machistas, conforme tradições repressoras ou crendices religiosas? Interessa-me a subjacência, o que está por trás dos comportamentos.

Ideologia, essa é a força subjacente a tudo o que fazemos em nossas relações privadas ou públicas. A ideologia fornece os códigos de leitura do mundo, os meios de compreensão da realidade. Sem ideologia não me relaciono com as circunstâncias, não as compreendo, não atuo sobre elas. Elas propiciam meu nexo com o mundo.

A ideologia compõe a minha vida ao tempo mesmo em que me circunscreve nos limites de um tipo específico de vida. Ainda que todo indivíduo esteja seguro de ser protagonista de suas circunstâncias, cada um de nós está “alocado” dentro de contornos gerais ditados por costumes, valores, crenças, numa palavra: por uma ideologia.

Edito de Liberdade Privada e Ideologia, Editora Acadêmica, de minha autoria, algumas citações atinentes, (referências na obra, disponível em Jusbrasil e Emporiododireito), as quais elucidam melhor o tema.

Para Roy Macridis, “uma ideologia consiste em um conjunto de ideias e crenças através das quais percebemos o mundo exterior e atuamos sobre nossa formação. Consiste de ideias compartilhadas por muitas pessoas que agem juntas ou são influenciadas a agir juntas de forma a alcançar fins postulados”.

Daniel Bell considera que “a ideologia é um compromisso com as consequências das ideias. A função latente mais importante da ideologia é mobilizar a emoção. As respostas estão prontas, e são aceitas sem reflexão”.

Conforme Nelson Jahr Garcia, a função da ideologia “é a de formar a maior parte das ideias e convicções dos indivíduos e, com isso, orientar todo o seu comportamento social, integrando o maior número de pessoas que, aceitando os mesmos valores e normas, atuem numa mesma direção”.

Deve-se entender que a pessoa não cria nem decide sobre uma ideologia. Pelo contrário, é uma totalidade ideológica que produz o indivíduo, ou mesmo o grupo. Quer dizer: não somos exatamente livres para escolher o que vamos pensar, logo, como vamos agir em decorrência do pensamento circulante que nos alcançou.

Sílvia Maurer Lane alerta que “a produção da ideologia não se dá conscientemente, mas sim em decorrência de uma visão da sociedade da posição de quem a domina e que precisa justificar e valorizar sua dominação”, sem que haja uma opção pessoal entre deixar-se envolver, ou se manter afastado ou infenso.

Na roupa de praia feminina não está em questão, pois, apenas um traje. Há um conceito de si, uma apreciação pública justificadora, uma compreensão de corpo, uma ideia de gênero, uma tradição, uma submissão, uma indústria de moda, uma interdição ou um incentivo à exposição, um jeito mais rebanho ou mais próprio de se portar.

No traje aparentemente “tão natural” há imposição, manipulação ou escolha. Há um modo de compreensão e relacionamento com o mundo. Há uma maneira de existir, de viver a vida. Pense, então, na próxima vez que for ao mar (ou a qualquer lugar), sobre que conteúdos ideológicos vão “vestidos” em você.

Dilemas do cotidiano

Por alguns anos Paul Gauguin (1848-1903), que legou ao mundo uma bela biografia, viveu um dilema: ser ou não ser artista. Levava a vida confortavelmente, ganhando dinheiro como corretor de valores. Para atender, talvez o pulsar da arte, talvez a vaidade, punha-se de artista nos fins de semana.

Em 1882, o mundo econômico ruiu (crises não são novidades). Foi-se o dilema; havia um argumento autorizando o caminho do artista. Mais: havia fatos cogentes a desobrigá-lo da condição de, quem sabe, futuro próspero homem de negócios.

Dilema é uma figura da lógica: “raciocínio cuja premissa é alternativa, de sorte que qualquer dos seus termos conduz à mesma consequência.” O vocábulo foi furtado da acepção acadêmica, e ganhou um sentido figurado: “situação embaraçosa com duas saídas difíceis ou penosas” (Aurélio).

Desde que se tornou artista, aliás, sem reconhecimento ao seu tempo, Gauguin jamais padeceu dessa desagradável aflição de viver para enricar. Por escolha, levou vida devassa. Teria dispensado indagações morais por uma razão simples: dispensara qualquer submissão à moral vigente.

Não obstante esse estado de desprendimento dos costumes e independência intelectual que os espíritos ilustrados alcançam, nas anotações de suas memórias, publicadas como livro em 1903, intitulado Antes e Depois, ele confessa um dilema.

“Tenho um galo. Ele é bonito e me diverte. Tenho uma galinha cinza prateado, de penas arrepiadas; ela cavoca, bica, estraga as minhas flores. Não faz mal, ela é engraçada sem ser pudica: o galo lhe faz sinal com as asas e com as patas, e logo ela oferece o seu sobrecu.

Lentamente, vigorosamente, ele monta nela. As crianças riem: eu rio. Que penúria, nada pra comer. Se eu comesse o galo? Ele estaria muito duro. A galinha, então? Mas eu não me divertiria mais vendo meu galo de asas púrpuras, de pescoço dourado, de rabo preto, montar na sua galinha. As crianças não ririam mais. Continuo com fome!!!” (Editado).

Seu dilema, ainda que tangido pela fome, suponho de entretenimento: um gracejo de si para consigo. Há quem saiba motejar com própria penúria: Gauguin continuou com vontade de comer diante da “insolúvel” dúvida sobre qual galináceo seria a comida que não comeu.

Não era um dilema elevado, hamletiano: “Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre em nosso espírito sofrer pedras e setas com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja, ou insurgir-nos contra um mar de provações e em luta pôr-lhes fim?” (A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca, de William Shakespeare).

Talvez essa seja a reflexão (ou ameaça metafórica) mais famosa da literatura universal. Famosa, ainda que “reduzida” à sua introdução: “Ser ou não ser, eis a questão”. Sobre o contexto do dito ou o significado do dizer pouco se sabe.
Bem, quero dizer que as angústias da humanidade não alcançam alta indagação; não são kierkegaardianas (compreensão da possibilidade de ser livre), ou heideggerianas (percepção do nada absoluto sobre o qual se configura a existência).

Os dilemas da vida corrente, em geral, não são filosofia. Nem alcançam a interrogação (talvez, de fato, uma afirmação) do dramaturgo inglês. Eles são tais e quais a jocosa indecisão do pintor francês.

Na vida cotidiana, o sujeito já meio gordo tem prazer e culpa enquanto come; ficamos horas satisfeitas e culpadas nas redes sociais; mulheres trabalham e se acusam (ainda, muitas) em dívida com os afazeres da vida doméstica; homens (alguns) se dividem entre mais trabalho ou mais dedicação aos afetos do lar.

Moralismos e conformações: o ardoroso prazer de dormir com “outro” alguém, a culpa por crer que “traiu” o alguém contratual; o pagar feliz pela busca de aparência e o sofrer por não alcançar o tipo ideal; a “alegria” de beber para fugir da vida medíocre e embaraçada e a ressaca moral de encontrar-se consigo mesmo ao fim do efeito do porre.

Todos estamos sujeitos a circunstâncias dilemáticas. Grandes ou pequenas, elas nos podem deixar boquiabertos. Existe, contudo, quem controle melhor as coisas e não se deixe apanhar pasmado numa “sinuca de bico”. Existe quem saiba discernir situações de saída difícil.

Dilemas: há quem saiba identifica-los, medi-los e tomar os seus. Rendo-lhes reverência. Gauguin, para seus fins, escolheu um pequeno. Não ouso concluir se com ele se divertia, ou se exprimia rancor à ingratidão que a sua época lhe dedicou. Mas ele o escolheu.

Há, todavia, quem não tenha uma boa medida dessas coisas e se deixe levar de atropelo, pondo-se titubeante a deliberar mais sobre o que seriam os custos de uma escolha difícil do que a respeito do encurralamento existencial que um dilema propriamente dito nos traz.

Escolha implica perdas, mas contempla solução. Dilema é a gravidade que não tem saída satisfatória. Quem não suporta perdas idealiza dilemazinhos: decisões de não decidir. Covardias do sobreviver diário. Gente assim pega gosto disso e nisso leva a vida. Fazer o quê?

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