quarta-feira, 24 abril , 2024
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Léo Rosa de Andrade

O asco blasé pela política

Há uma palavra plena de significados para a Filosofia, para a História, para os sentidos das coisas humanas: contingente. Contingente é um acontecimento possível, mas não necessário; não apenas sobre as condições de sua ocorrência inexiste domínio, como elas são mesmo de natureza indomináveis. Disso decorre uma questão: a Civilização é resultado cogente de ações humanas, ou é acidental, implicação do acaso? Os escolásticos (pensadores cristãos medievais esforçados em conciliar uma racionalidade idealizada com o que consideravam “a verdade revelada”) ditaram o seu entendimento por séculos.
Contingente, na “escolástica, diz-se de qualquer ocorrência fortuita e casual quando considerada isoladamente, mas necessária e inevitável ao ser relacionada às causas que lhe deram origem” (Houaiss). Deve-se ler “causas que lhe deram origem” como a vontade onipresente do deus medieval cristão. Spinoza (sec. 17) retomou o tema. Para o filósofo, vistas as coisas com percuciência, em tudo se encontra nexo (causa e efeito). No “spinozismo, diz-se de circunstância aparentemente eventual, em decorrência de uma limitação do conhecimento humano na compreensão de sua origem causal” (Houaiss).
“Na filosofia contemporânea, em polêmica com a tradição, diz-se de evento natural ou humano que se caracteriza por sua absoluta indeterminação e imprevisibilidade” (Houaiss). A Filosofia e a História vigentes compreendem que os acontecimentos não são consequentes necessários os seguintes dos anteriores. Aurélio: “Diz-se das coisas e dos acontecimentos que se concebem, sob qualquer um dos aspectos da sua existência, como podendo ser ou não ser, não trazendo em si a razão da sua existência”. Contingente, pois, nesta acepção, opõe-se a inevitável. Acentuo: nada traz em si mesmo a razão da sua existência.
Um acontecimento, então, pode ter-se efetuado ou não, e, se efetuado, poderia ser diverso do que foi. Nada tem que ser como é. Agora, tendo sido como foi, ou sendo como é, gerou ou gera efeitos tais e quais, e não outros. Gera efeitos no mundo, mas não o determina, porque sobre ele há a ação humana. A ação humana, contudo, à sua vez, é influenciada ou até delimitada pelas coisas e acontecimentos. Seja: a História participa em parte dos desdobramentos históricos. Do mesmo modo as condições materiais de um tempo ou lugar incidem na História. Mas há uma terceira variável incidente: a vontade humana.
O humano é responsável em última instância pelas condições éticas em que vive. Ética como eleição de valores e prática de discursos. Escolhas éticas e práticas cotidianas, todavia, se tiram a si mesmas de dentro de compreensões ideológicas. As compreensões ideológicas, assim, incidem sobre ações. Dizendo de outra maneira: nem tudo é contingência na civilização; o humano tem parte ativa na História. O humano age sobre a História, contudo o faz a partir da compreensão de mundo hegemônica, a partir da ideologia que o alcança. É muito difícil pensar fora do pensamento que todo mundo pensa.
Os gregos atribuíam ao cosmo (disposição necessária do mundo) todo e qualquer acontecimento. Os cristãos tomaram essa compreensão de mundo (estoicismo) dos gregos e lhe agregaram uma divindade. Então, para toda a tradição cristã, o mundo é ou deixa de ser conforme a vontade de deus.
Só com a Modernidade e a invenção burguesa do indivíduo é que se trouxe o humano para a gerência do humano. Ou o humano faz o mundo à sua imagem e semelhança, ou dana-se no mundo. Daí o humano começou a reconstrução de valores humanos e a propor que valessem para toda a humanidade. Não obstante os burgueses terem traído a própria Revolução e tomado o mundo só para si, o fato é que a realidade cotidiana não é mais cósmica nem divina. Liberdade e Igualdade tornaram-se qualidades do Ocidente, ainda que não aconteça Fraternidade bastante para a devida implementação.
A Tradição Ibérica nunca foi suficientemente burguesa. Cultuamos mais o cristianismo estoico do que a liberalismo burguês. Ademais somos de subjacência patrimonialista, baralhamos “naturalmente”, público e privado. Resumo: os brasileiros não nos responsabilizamos pelas nossas mazelas sociais ou morais. Entretanto, estamos estupefatos, como se não tivéssemos culpa de nada, com nossa violência urbana e com nossa roubalheira quase geral. Ora, os episódios da História, ainda que não sejam cósmicos ou divinos, e mesmo que sejam em grande parte contingentes, o são, em boa medida, administráveis.
Em Direito a responsabilização por danos considera a teoria que distingue imprevisão de imprevisibilidade. Algumas coisas não são passíveis de previsão. Se não há previsibilidade, então não se pode responsabilizar ninguém por uma ocorrência infeliz, advinda de caso fortuito, ou de força maior.
Se posso prever um dano, mas, por imperícia, imprudência, ou negligência, não o faço, sou responsabilizável. Por ação ou omissão, sou responsável. Os brasileiros são responsáveis ativos pelos danos que nos causamos, e somos responsáveis passivos por não contribuir com nossa vida pública.
Enfim, o cosmo não arranjou nossa realidade social; deus nos abandonou à violência; orações conduziram o mercado divino a se expandir no Congresso. Largando a coisa nacional aos fatores contingentes, corremos a aventura de tudo ficar como está. Ou se agravar. Melhor vencer o asco blasé e fazer política.

Ou vai à luta, ou te conforma

Má-fé é uma expressão cara para os existencialistas. Significa a não assunção da responsabilidade em ter responsabilidade. Ninguém está isento do encargo de escolher nem das consequências das escolhas.

Posso escolher não escolher. Com essa decisão resta decidido que tudo o que me envolve permanece no estado de coisas vigente. Aí, má-fé: atribuição de culpa a outro pela conjuntura que não me agrada.

Qualquer outro é culpado; sou apenas um ausente. Mas minha culpa é exatamente essa: a ausência. Os ausentes envolvem a Sociedade nas consequências de suas escolhas, ainda que sejam não escolhas.

O Brasil é resultado, principalmente, de ações e omissões dos brasileiros. A França (e o mundo) é consequência, entre outras coisas, do ativismo político do existencialista mais engajado e combativo de todos: Sartre.

Jean-Paul Sartre foi professor, filósofo, escritor, teatrólogo, e crítico. Mas foi sobretudo um militante. Defendia e praticava que especialmente os intelectuais estavam obrigados a desempenhar um papel ativo na Sociedade.

Dado que a existência precede a essência, o humano não nasce com determinações nem conteúdos, então, lutar pela qualidade da vida pública é contribuir para que se tenha melhor existência, logo, melhor essência.

A História não limita categoricamente o indivíduo, mas ela produz contingências, ou propiciadoras, ou adversas. Um povo pode “herdar” um país em desordem moral, mas esse povo pode conduzi-lo para outra condição.

A História não renuncia aos seus agentes. A tradição cristã, porém, crê em vontade divina. A mentalidade cristã brasileira de direita e de esquerda não compreende nada sobre a constituição material da realidade.

Não temos o costume de nos arriscar na tarefa de pelejar com a História. Não somos agentes da nossa vida pública. Somos crentes. Acreditamos, à esquerda e à direita, em divindades e em salvadores políticos.

Sigmund Freud: “Qual sua responsabilidade na desordem da qual você se queixa?”. Seja: na lamentação da nossa triste situação política e moral, não teríamos nós, brasileiros, algum consentimento ou responsabilidade?

Não obstante a recente História, uma direita vingativa pede o retorno de facínoras da Ditadura Militar de 1964. Apesar de fatos evidentes, uma esquerda ressentida resguarda um líder demagogo populista e ladrão.

No meio disso, para muitos brasileiros, pouco se lhes dá o rumo do Brasil: declaram-se com nojo de políticos, o que é compreensível; dizem-se desinteressados por política, o que é uma alienação voluntária.

Nos afastamos da res publica, tornando-nos estranhos a ela, desconhecendo as formas de produção de sua realidade, então, o que nela sucede adquire conformações independentes e antagônicas ao nosso interesse.

O mundo político ficou encistado; vive de si para si, à parte do Brasil. O Brasil xinga o mundo político. Os astuciosos da política capitalizam as circunstâncias. Forma-se um nazismo à direita. Forma-se um fascismo à esquerda.

Direita é saudosista do passado macabro: autoritarismo, disciplina social, repressão policial. Esquerda inconformada com a perda do poder: acusa conspiração, desabona a Justiça, desqualifica o “inimigo”; “ou nós, ou eles”.

Os brasileiros podemos mais que isso, mas não haverá solução advinda de meros queixumes. Se queremos outra coisa, a militância se impõe. As eleições estão aí: Incumbe empenho, participação, apoio, candidatura.

Não haverá outros políticos se não houver outros candidatos. Procura a vida política, as atividades de partido. Ou sartreana, ou freudiana, assume responsabilidade. Ou vai à luta e faz hora, ou espera acontecer e te conforma.

O imperador e o seu apartamento

É e muito difícil ser imperador. Antes de tudo, o imperador tem que ter um império. Sem o próprio império, ninguém impera. Estreitar o lugar de domínio soberano sem diminuir a soberania facilita a imperatividade.

Foi o que fez: por ato de autoridade sua sobre si mesmo, declarou-se imperador de si e do seu apartamento em toda a sua extensão. Em si e em todo o alcance do seu domicílio, era ele quem mandava.

E mandava muito bem! Pelo menos acreditava em suas resoluções. Se bem que nem sempre se emprestava muita credibilidade em si. Suspeitava que não se mandasse lá tão bem como se deveria mandar.

No apartamento, no correr do seu alcance, seguro, dava ordens imperatórias. Mas quanto a se obedecer a si, não podia afirmar com convicta asseveração que desse ouvido de vassalo à sua voz de autoridade.

Às vezes havia desatinos entre si e sua vontade. E noutras ocasiões podia estar aprumado consigo, mas não era sempre que estava em paciência para se aturar. Não se espantava nada em perder a paciência consigo.

Também já ocorrera de se apanhar mentido descaradamente para si: surpreendia-se dando intensidades a feitos nem tão memoráveis; flagrava-se mitigando malignidades das piores que cometera por aí.

A gente faz dessas coisas, quando pensa no passado do próprio império: enfeita os acontecimentos que nos parecem dignos; alivia da memória as covardias gerais. Não nos devíamos permitir a narrativa das próprias proezas.

Mas nos damos a contar tudo de bom, quando a vida vai bem. Desenhamo-nos bonito no que ainda não fomos. Lemos o passado como se não pudesse ter sido melhor. Propomo-nos heroicos no como estamos.

Quando a vida vai mal, todavia, tememos pelo império. O futuro fica ruim: quase desistimos do caminho até lá. E o passado, horrível: só por prodígio sobrevivemos; que vida sacudida, que desgraça, que sofreguidão.

Desse jeito, entre altos e baixos, imperava o imperador. Não que estivesse ruim; até que estava muito bom. Entretanto, carecia de elevação. Supôs a falta de uma imperatriz. Porém, não era. Jamais o fora.

Imperatriz é como a mulher do imperador. Não basta. Nunca bastou. Impérios se ressentem de uma imperadora. Imperadora tem índole reinante. Mesmo sem título que dê licença, tem capricho de grau a reverenciar.

Imperatriz é como uma senhora com etiquetas, protestos, vindicações; imperatriz está preocupada com o que pode e o que não pode. Imperadora, não. Imperadora é evento de outra grandeza: chega e participa; acontece.

Imperatriz tem título; imperadora tem comando. Imperatriz intromete-se; imperadora estabelece o competente território. Com uma imperatriz discutem-se miudezas; com uma imperadora, deliberam-se importâncias.

Ocorreu: o império foi ocupado por uma imperadora. Tudo sem os modos invasivos de uma imperatriz. Foi num momento em que viu o passado do jeito que foi como devia ter sido: na hora certa, deu bem no que deu.

O imperador e a imperadora estão confabulando. Contam o pretérito e o presente das coisas. Cada um se diz de si. Não se fazem de conta que são unidade. Querem ser duas pessoas a escrever o futuro do império.

O futuro é o hoje onde a vida estará. No dia seguinte há sonho do passado. Essa é a história do imperador do apartamento: aconteceu-lhe uma imperadora incondicional. No império, tudo será como agora, amanhã.

Falta-nos a invenção de uma moral pública

“Sem Deus, ficamos apenas com a moral humana. O resultado é o hiperindividualismo contemporâneo. Quando a moral é baseada apenas nos princípios humanos, esse humano se resume numa figura: eu!” (Darlyson Feitosa, Veja, 26abr17).
Desimporta-me a afirmação da existência de um deus único. Deus, redigido com D maiúsculo, lança um deus particular sobre toda a humanidade. Os deuses do mundo, que são muitos, são, então, arbitrariamente desconsiderados.
Diversas culturas empenharam-se em universalizar sua divindade. Na linhagem semita, os judeus o tentaram, os cristãos dominaram o Velho e o Novo Mundo. Os muçulmanos estão em desforço moral e físico para fazê-lo.
Deuses são violência real. Dos vários deuses advindos das diversas interpretações da Tradição Ocidental, todos foram impostos por impérios. Impérios mercantis, impérios governamentais, impérios abençoados por impérios de fés.
Isso “faz parte”, é História ao alcance de quem se interesse. Disso jamais resultou vida pacificada, igualdade entre pessoas e menos ainda entre gêneros, liberdade de qualquer ordem. A paz religiosa não é fraterna, é totalizante.
As religiões não deram, é fato, jeito no mundo. Não há um único resultado conferível. E não se deve olvidar que religiões só deixam de se impor por violência quando não dispõem de poder para fazê-lo; e estão à espreita para tentá-lo.
No exercício da violência, as religiões sempre foram minuciosas. Jogam os grandes jogos, controlam os sistemas educacionais, determinam os modos de organizar as famílias, produzem as condições individuais de interpretação do mundo.
Mas a afirmação inicial é verdadeira. Dado que os deuses andam enfraquecidos, estamos sentindo falta de alguma moral, e restamos compreendendo, com gosto e a contragosto, que a moral possível é a moral humana.
A questão com a qual a humanidade se depara e deve dar jeito é, mesmo, a da moral. Sem morais divinas, ficamos com a disponibilidade de morais humanas. Disponíveis se inventadas; se não as inventarmos, não as teremos.
Ora, se deuses sempre foram usados por poderosos como legitimadores de seus interesses, se donos de poder deram-se e dão-se como terceiros intervenientes da “legítima” moral divina, não aprendemos a agir por conta própria.
Vindos desse mau hábito de aceitar morais “deusificadas” conforme a interpretação de seus poderosos intermediários – morais “reveladas” – pomo-nos pasmos diante da necessidade de dar jeito numa moral convencionada.
No Brasil, não queremos política. Queremos, sem um deus que nos dê solução, uma solução deus ex machina: uma potência dramatúrgica que desça em cena com a missão de arbitrariamente resolver um impasse que esteja posto.
Nem à esquerda, nem à direita; ninguém é portador da solução. Não há heróis. A História mesma não produz heróis; heróis são produzidos pela História. Em geral, são farsas. Temos que nos fazer. Seja: fazer nossa moral pública.
Como o “maior país cristão do mundo” já deveríamos nos ter dado conta de que a divindade não nos ofereceu uma moral condizente com a expectativa do povo, religioso ou não. Somos corruptos até as entranhas. Sim, há exceções.
Mas não valem exceções. Hannah Arendt: em política não se conjuga o verbo na primeira pessoa do singular. Ou falamos no plural, ou cada um que se vire por própria conta. Na vida pública, resolver-se no singular é resumir-se ao eu.
Não cabe o privado como moral pública. Feitosa pede pela moral da sua divindade. Nosso tempo requer moral republicana, construída. Moral humana: a invenção da moral republicana é feita no cotidiano político, é coisa secular.
Não há revelação na construção da pátria. A modernidade inventou o indivíduo. O indivíduo deve subsistir. Eu sou eu, como indivíduo. Como moral pública, careço de ser nós. Feitosa, na peleja política, vai legitimar tua posição. Amém.

Os sentidos dos acontecimentos, o acontecimento da vida

Na nossa Tradição Ocidental a vida não foi valorada pela vida mesma. Ocorrem-me três modos de valorar a vida: pelo seu reconhecimento e gozo, como uma função para alcançar um fim, como um sentido dado.

Os gregos entendiam a vida como um evento entre os eventos do Universo. Tudo estaria determinadamente ordenado num Cosmo absoluto e eterno. Ou se sofria a própria condição de vida, ou se a gozava.

Os estoicos buscavam a imperturbabilidade, a extirpação de toda e qualquer paixão, a aceitação resignada da condição do mundo e no mundo. Pregavam e praticavam uma ética da conformação ao estado de coisas vigente.

O gozo da vida epicurista afastava as preocupações com a morte. Cultuava a ética da reflexão inteligente: posto que o mundo é coisa dada, desapaixonadamente vivam-se os seus prazeres, e mais não pode ser feito.

O viver, pois ao tempo do auge grego, conforme suas principais correntes filosóficas, resumia-se à abdicação dos ímpetos humanos, seja resignando-se, seja comedindo o usufruto do estar vivo.

O estoicismo é a matriz ideológica do cristianismo, daí, pois, está subjacente à nossa civilização. É verdade que os cristãos acrescentaram um valor à vida, mas só o fizeram para pôr o viver a favor de uma causa.

A vida em si não é um valor para a cristandade. Mais do que viver resignadamente, o cristianismo pede um viver em sacrifício por uma causa futura e de outro mundo, alienando o tempo e o lugar da existência concreta.

Eis a causa: a humanidade teria um pecado de origem, sofrendo, em decorrência, condenação à ruína eterna. A divindade cristã veio à terra para o resgate dos humanos. A promessa de redenção pede uma ética.

O divino sacrificou-se pela humanidade; a humanidade, então, lhe é tributária de eterno sacrifício. A dívida não seria exigível (livre arbítrio). Todavia, em não a pagando, o humano padecerá de inacabável castigo.

Essa cilada capturou a História por quase dois milênios. E ainda respinga efeitos: muita gente vive a vida como tarefa para viver noutro tempo e lugar. Esse modo de pensar nega a historicidade dos acontecimentos.

Só o marxismo pôs as coisas no lugar: a humanidade é produção da história dos humanos; a história dos humanos é produção da humanidade. Acontece que os marxistas fizeram do marxismo uma religião.

Para o marxista ortodoxo a vida tem o sentido dado pelo modo de produção vigente. Sartre, marxista ressabiado, sabia que a vida não porta sentido, ainda que a existência (incluído o modo de produção) preceda a essência.

Para Camus, ademais de a vida não ter sentido, estar vivo é um acontecimento absurdo. Sartre e Camus eram existencialistas. O primeiro queria construir sentidos com engajamentos; o segundo não abraçava ideais.

Pergunto-me: o quanto do viver vem do animal (Darwin)? E o quanto é pautado pelo que não nos sabemos (inconsciente, Freud)? Seguramente, estamos um tanto entre o bestial contido e os conteúdos recalcados.

O animal absurdo refreado pela sociedade procurando sentido para a vida: angústia. Perdido em si, sem respostas; perdido na História, que não leva a lugar algum. O humano pode ser maior do que a condição humana?

A humanidade como massa é enquadrada em sistemas: de produção, de crenças, de legalidade, de diversão, de disciplina, de consumo, de ensino. Sistemas de poder que se referenciam, se legitimam e suportam mutuamente.

Sistemas produzem ideologias, oferecem modos de pensar. Modos sistemáticos de pensar fortalecem sistemas de dominação. A humanidade consome modos produzidos de viver como se vivesse o sentido de vida.

A humanidade disciplinada (Foucault) ainda demanda explicações conclusivas para os acontecimentos, incluindo a vida. A humanidade pensa que a vida é um acontecimento à parte dos acontecimentos gerais. Engana-se.

Estoicos nos fizeram objetos passivos do Cosmo; cristãos nos fizeram objetos culpados da sua divindade; marxistas nos fizeram objetos dialéticos da História; psicanalistas nos advertem que não nos sabemos de todo.

Existencialistas indagam: agora que sabemos de tudo isso, o que faremos? Bem, somos um acontecimento como outro qualquer, mas adquirimos consciência. Humano é o que tem consciência das circunstâncias (Sartre).

Podemos fazer acontecer sobre os acontecimentos. Não obstante, há quem debite a vida em crendices, como há quem a consuma em consumismos baratos, ainda que caros. São vidas entre igrejas e shoppings.

Estilística da existência (Foucault); fazer consigo sobre o que consigo foi feito (Sartre); vida como obra de arte (Nietzsche). Vida prazerosa (Epicuro). Sofisticar o acontecimento vida. Mais não há, nem há causa de haver.

Cumplicidade, conversa, possibilidade amorosa (Coautora: Karine Vieira)

Os termos da vida em comum; a comunhão de propósitos; as reciprocidades inteligentes e sensíveis. Esses são fatores sine qua non de qualquer parceria. São, portanto, também, condição elemental da vida amorosa.

A questão é: tais coisas acontecem, ou são feitas acontecer? Há quem creia e defenda com robustos argumentos que temos demasiada pouca gerência sobre os nossos encontros com o mundo, na expressão de Espinosa.

Já a vida como obra, não como acaso, ou de obra sobre o acaso: Nietzsche. Ele quer que o acaso seja só humanidades em acontecimento, e que seja tomado para ser matéria da ação sobre o mundo e sobre o viver mesmo.

Almejo mais: aspiro à inteligência interferente nas possibilidades. A vida depende dos meus encontros espinosianos com o mundo e da empolgação do acaso nitzscheniano, certo. Mas eu quero para mim alguma gerência disso.

Creio que se me dou um tanto de coisas e me excluo de outras tantas, amplio chances de, junto com o acaso, me proporcionar bons acontecimentos. Disponho de uma razoável margem de liberdade, logo, de ação (Sartre).

O que faço com o que foi feito de mim? Minhas escolhas e as cautelas e ousadias cometidas para alcançá-las materializam consubstanciam esse fazer. Nas relações amorosas, menos que as paixões, estão as atitudes eletivas.

Paixões são sintomas de suspeitosas demandas minhas, unicamente. As eleições são apaixonantes sem serem paixões brutas. De outro modo: quero paixão pelo meu tipo, por quem eu possa ter bons termos de vida carinhosa.

Não falo de amor como contrato. Penso em que vida eu me faço viver. A que vida eu me levo para ter vida existida? Um existencialista considera que o animal humano se faz ser humano quando está senhor da sua existência.

Só quem tem noção de si consegue fazer da vida uma obra de arte (Nietzsche). Uma vida tal exige condições de estar no mundo. Se existência precede a essência, preciso me dar existência que apure a essência.

Talvez a consideração anterior a todas seja mesmo: com que tipo de gente eu quero estar no mundo? Com que tipo de pessoa espero levar vida emocionada que seja, par e par, artisticamente emocionante?

Cabe procura assim como cabe esperar pelo acaso. A procura é mais que empolgar o acaso; é gerenciar o tanto possível a parte afetável do rumo das coisas. A procura permite e até recomenda escolhas.

Agora, a vida como construção. Edifica-se sobre o que vem da cata selecionadora. As partes combinam a vida, no tanto que a vida é combinável: denominador comum; ajustes de propósitos; sintonias inteligentes e sensíveis.

Teoria dos conjuntos, diagrama de Venn: uma pessoa, outra pessoa, dois conjuntos. Jamais haverá um casal, porque a relação entre dois conjuntos ou duas pessoas não as faz unidade, mas estabelece área de intersecção.

A relação entre pessoas ou conjuntos é limitada pelas fronteiras do denominador comum. Nas relações amorosas as partes abrem mão de parte da soberania pessoal em prol da vida mútua, mas não abrem mão de si.

Ninguém conseguirá dispensar o ego, porque não se tem um ego, mas se é um ego. Como se anular psiquicamente? Ademais, há um mínimo eu (Lasch) a ser mantido em tempos difíceis, e convivências são sempre tempos difíceis.

Concedemos, quando muito, pequena parte de nós à relação. O mais do ego não interage, insubordina-se a obrigações, desconsidera limites. Talvez o sujeito advertido (Lacan) dessas coisas dessas coisas dê conta. Não sei.

Quem sabe a palavra mais adequada para possibilidade da relação amorosa seja cumplicidade. Quiçá os que se façam cúmplices de um mesmo desígnio de vida possam materializar seu desiderato.

A cumplicidade para levar a vida como ela é (Rodrigues) solicita amantes artistas. A realização amorosa é fazer artístico. O utensílio dessa arte é a conversa. A conversa é a ferramenta amorosa. Sem conversa não há amor.

Sexo, amor, inteligência, sensibilidade

Ela: – De repente, temos vontade de alguém: uma pessoa se consubstancia como gosto, faz-se, sem ato objetivo de fazimento, objeto de nosso interesse. Nos expomos, em busca, ao acontecimento. Acontece.
Ele: – Instala-se o desejo, à revelia, muita vez com a contrariedade do desejante. Eis, até parece, o propósito, como se propósito houvesse, de os corpos se encontrarem, curtirem-se. Vencido o desejo, vencida a relação.
Ela: – Haveria um propósito no encontro de corpos? Não penso assim. É acaso… É despropositado. Propósitos diversos, noutros tempos, aproximaram corpos, comprometeram corpos. Desejo é coisa despropositada.
Ele: – Sim, e anda solto de cumprir. A realização do desejo está descompromissada de selos de eternidade. Talvez essa seja a melhor substância da gramática afetiva não sólida: desfazer-se quando acaba.
Ela: – Sim, a relação afetiva está mais submetida à vontade pessoal, liberou-se muito do institucional. Adotou o discurso do momento prazeroso, desconstruiu a compromisso de eternidade a qualquer custo.
Ele: – Mas, aí, não há uma confusão? As coisas não se estão convertendo em puro fazer sexo, e sem desejo? Isso tem sentido? O sexo descompromissado, não voltado ao objeto do desejo, apazigua o ser desejante?
Ela: – O ser desejante não dorme em paz depois do sexo pago, do pornô, da masturbação? São duas coisas. Entre o tesão e o orgasmo há a cultura, é claro… Mas o primitivo pulsante é a busca de orgasmo.
Ele: Olha o dizer de uma mulher, Marguerite Duras: “Não é fazer sexo o que conta, mas sim ter desejo. Há muita gente que faz sexo sem desejo. Eu soube desde criança que o universo da sexualidade era fabuloso, enorme”.
Ela: São coisas diferentes, ambas tão humanas. Não nos neguemos o primitivo. Sim, há essa pulsão, essa cultura, esse insaciável, essa vontade sem objeto que nunca se sacia: o desejo sem objeto. E há o instinto, puro sexo.
Ele: – Marguerite não as separaria. Ela diz de uma latência que jamais se acalma: “Quero saber o que se encontra na origem do erotismo, o desejo. O que não é possível, e, talvez, não se deve apaziguar com o sexo”.
Ela: – Não há paz possível. Somos corpos sem essência. Nossa existência se vai inscrevendo em nós, jamais estaremos terminados. Isso angustia. Um outro, a interlocução, talvez alguém nos acalme. É o possível.
Ele: – Os casos vindos do acaso? Acontecimentos dos corpos nos encontros com o mundo? Não ficam. Episódios amorosos não perduram. Há quem se ajeite para caber nas expectativas do outro. Falseiam-se, logo se revelam.
Ela: – Olha… Pensa em escolhas possíveis. Não te permitas só o acaso. Elege e então procura. E procura e procura… Procura alguma coincidência de vontades. Um tipo… Inteligência, sensibilidade, erotismo… Vontade.
Ele: – Um alguém que faça da vida uma obra de arte? Encontros com o mundo, como disse Espinosa? Cuidado em edificar-se com grandeza e buscar elevação, como quis Nietzsche? Um controle dos afetos, de si, do outro?
Ela: – Um tanto complexo… Nada complicado. Comportamos uma animalidade. Não a neguemos; não nos reduzamos a ela. Muitos humanos abstraem-se de sua origem. O organismo quer orgasmo. Mas, sim, orgasmo não basta.
Ele: – Amor? Seria? Ian McEwan: “O amor não é sempre uma virtude, pode ser uma ferramenta muito controladora. Nunca estive de acordo com a canção dos Beatles All You Needs Is Love. Também preciso de inteligência”.
Ela: – Sim… Inteligência e sensibilidade, qualificadoras da humanidade. Amor sem inteligência e sensibilidade é controle, raiva, maldade. Mas… retomo: como não basta só sexo, não basta só amor. Não é verdade?

Os ricos e a apropriação de renda via previdência social

Temos sido como que uma decorrência simples de nós mesmos. Não creio na linearidade da História, mas às vezes me fica a impressão que somos, nos privilégios de certas castas de hoje, um simples desdobramento das desigualdades do passado.

Com a vinda da Corte portuguesa ao Brasil, em fuga de Napoleão Bonaparte, vieram as regalias da nobreza. Aos nobres se reservou o que havia de melhor. O melhor era trabalhar no aparato estatal real, quer dizer, em algum emprego público.

Entre 15 e 25 mil, é o número estimado de cortesões que atravessaram o Atlântico. Apurado tal número, deduzindo-se mulheres, crianças e alguns serviçais, supõe-se que se criaram, para acomodá-los, algo entre 5 e 10 mil empregos públicos.

Empregos para acomodar essa gente que se confundia com a máquina administrativa do Estado português sediado, por circunstâncias forçosas, em terra brasileira. Fugido às pressas, Portugal teve tempo de trazer na bagagem os modos portugueses de ser.

A nossa Coisa Pública nos caiu de pacote, lançada sobre o que tínhamos de uma incipiente Sociedade. Não construímos nos desdobramentos das necessidades a nossa burocracia estatal; a Corte, majestática, deitou-se sobre o Brasil.

No andar dos acontecimentos, então, o lugar nobre do emprego público foi inaugurado pelos áulicos; depois, foi recinto dos filhos dos coronéis da política; a seguir, feito prêmio para os indicados partidários; após, mantidos por “direitos adquiridos”.

Estão aí, ainda hoje, a nobreza do emprego no Estado, o corporativismo que compartilha vantagens que o trabalho na iniciativa privada não possui, a partilha partidarizada da sua gerência, os penduricalhos de “vantagens adquiridas”.

Tudo isso desembocou na previdência. Temos dois regimes, regra geral: o que protege os funcionários públicos, o que abrange os celetistas. Até onde a internet pode me informar, essa separação entre trabalhadores é uma exclusividade nacional.

Trago dados apresentados e discutidos no programa Canal Livre publicado em 10abr17, apresentado por Ricardo Boechat, com Fernando Mitre e Eduardo Oinegue, recebendo José Márcio Camargo e José Roberto Savoia.

Gastamos 13% do PIB com previdência com pessoas acima dos 60 anos, assim como a Alemanha. Temos 11% da população acima de 60 anos; a Alemanha, 23%. Países com população de mais de 60 anos equivalente à nossa gastam em média 4% do PIB.

No setor público há paridade de vencimentos entre o servidor na ativa e o aposentado. A média de aposentadoria nesse setor é R$ 9 mil; no setor privado é R$ 1.6 mil. Exatamente o setor produtivo é o castigado pelo nosso sistema.

Entre os Poderes da República, o gasto médio no Legislativo é R$ 28 mil; no Judiciário é R$ 25 mil. No Ministério Público é acima de R$ 30 mil. A média do Executivo é mais reduzida, inclusive pela discrepância de salários dentro do próprio Poder.

O setor público gasta 115 bilhões com 1 milhão de aposentados, o setor privado gasta 500 bilhões com 33 milhões. A quantidade de aposentados com a média de R$ 1,6 mil é de 33 milhões. Um milhão de pessoas alcança média de R$ 28 mil.

O déficit acumulado do setor público de 2001 a 2015 é de R$ 1,3 trilhão; o do setor privado foi de R$ 450 bilhões. Comparando, o bolsa família nesse período gastou R$ 250 milhões, atendendo a 30 milhões de pessoas.

Aposentadoria do setor público é o maior programa de transferência de renda de pobre pra rico. Esse setor formou um estoque de direitos em aposentadorias e pensões, provocando um buraco de 250 bilhões ano na previdência.

A previdência tem R$ 450 bilhões de crédito. R$ 300 bilhões tornaram-se incobráveis. Esse crédito é um estoque, mesmo que se o realizasse, seria uma entrada única. O problema da previdência é de fluxo. Ainda que se cobrisse o furo, ele se repetiria.

Pobre aposenta-se por idade aos 65 anos. 60% dos aposentados por idade é de baixa renda. Classe média e alta é que se aposenta por contribuição. À maioria dos aposentados toca a aposentadoria mínima, que é o salário mínimo.

Nosso sistema previdenciário, pois, se é um problema para o Brasil, é uma solução para as castas que se agarram às entranhas do Estado e dele ou por meio dele sugam tudo o que podem, inclusive a renda de final de vida dos desfavorecidos da Nação.

Os intelectuais e a adulação ao poder

Bertrand Russel (Dois conselhos importantes – YouTube): “Quando você está estudando um assunto, ou considerando alguma filosofia, pergunte a si, somente. Quais são os fatos? E qual é a verdade que os fatos revelam?

Nunca se deixe divergir pelo que você gostaria de acreditar, ou pelo que você acha que traria benefícios às crenças sociais se fosse acreditado. Olhe apenas e somente para quais são os fatos. Esse foi o conselho intelectual que eu gostaria de dar”.

Olhando com algum distanciamento os fatos brasileiros, o que está à vista dos olhos de querer ver? Penso que a estupidificação do senso crítico médio do País. Estamos numa desobrigação de compromisso cúmplice e emburrecedora.

Mesmo nossas formações intelectuais mais esclarecidas ficam se digladiando, desde sempre sem argumentos, sobre quem é mais ladrão do que quem. Pretextam com habilidade verbal vazia de conteúdo, sempre sob aplausos de interessados.

Chegamos ao triste ponto em que defensores de uma grei, já não podendo sustentar admiração por seus próceres, passam a regozijar-se com as acusações de rapacidade que recaem sobre adversários.

Ora, a Pátria está feita um sindicato de ladrões. Eis o fato. O que é havido por direita sempre nos roubou. O que é tido por esquerda veio e institucionalizou o roubo. Os antigos roubavam do Estado. Os novos organizaram o Estado para roubar.

O conselho de Russel solicita ao intelectual brasileiro que divirja do erro, venha ele de onde vier. A atividade intelectiva prescinde de agradar. O intelectual independente é o reduto ético possível nos momentos desavergonhados.

Costumo citar Umberto Eco. O pensador a quem o jornal La Repubblica, de Roma, definiu quando da sua morte como “o homem que sabia tudo” fustigava os silentes obsequiosos para as quais “a discordância é uma traição”.

O filósofo e romancista italiano defendia que a discordância política, a crítica ao poder da coloração que fosse, era, em vez de uma traição, o sal que impede que os valores da democracia e da liberdade se corrompam.

Sua obra sempre foi a busca por contradições, nas quais encontrava a liberdade. Para ele, o aplauso ao poder ou a falta de sentido crítico conduziam ao que chamava de “fascismo eterno” (http://migre.me/t5tv2).

Insisto e situo com Milton Santos: “O intelectual existe para criar o desconforto, é o seu papel. Não há nenhum país mais necessitado de verdadeiros intelectuais, no sentido que dei a esta palavra, do que o Brasil”.
Os intelectuais brasileiros ao se fazerem sequazes acríticos de líderes partidários restam obrigados em dívida moral para com o povo brasileiro. Há condescendência, preguiça, ou talvez seja mesmo dependência de verba pública.

Ceticismo metódico, dúvida do próprio juízo sobre os acontecimentos. Submissão só aos fatos, e quando eles se nos apresentarem incontestáveis. René Descartes, num esforçado discurso sobre o método para bem conduzir a razão.

A nossa intelligentsia abandonou o rigor. Desconsidera, talvez propositalmente, a complexidade das relações políticas do País, as quais incluem a corrupção como modo de intermediar interesses e poder.

Estamos um tanto complicados, tudo indica, e para além das diatribes entre coxinhas e mortadelas. Para permanecer com o marcador da Modernidade, Descartes: “Não existem métodos fáceis para resolver problemas complexos”.

Quer dizer: a “limpeza’’ que está sendo feita no mundo político é conveniente, mas não é solução. Se afasta maus governantes, não elege bons governos. Unicamente a vida política produzirá bons governantes.

Não gostamos de vida pública, entretanto. Temos desapreço por política. Que nos falta? Que se pode fazer? Evidentemente, não tenho a resposta. Suponho, todavia, que ela nascerá da relação entre os intelectuais e a política.

Intelectual orgânico. Gramsci o vinculava ao partido político, supondo “revolução”. Isso, se ainda cabe em algum lugar, por aqui, parece, já não tem cabimento. Todavia, a vinculação política do intelectual permanece um valor.

Retorno, contudo, a nós mesmos, ao mal dos nossos intelectuais: a tietagem. Tietar: “proceder como tiete em um ambiente; admirar incondicionalmente alguém, ou algo, dando disso mostras conspícuas” (Houaiss).

Nossos intelectuais nos devem o seu valor, o seu saber. Devem-nos seu engajamento na vida partidária, nos movimentos sociais. Eles saberiam contribuir com a formação de uma cultura menos arrivista do que tem sido a nossa.

O significado do intelectual engajado é o significado da crítica pública. O intelectual saberia ser o sujeito que adverte a Nação. A esta conta os intelectuais se deviriam obrigar. Claro, se puderem viver sem adular o poder.

Nenhum fascismo, toda a Constituição, Ferrajoli

As crianças se vão tornando adultas tendo que realizar cotidianamente uma prova de amor requerida pelos pais: obedecer. Obediência é prova cabal de amor. A criança não delibera com fundamentos; ela obedece ou desobedece. Desobedecer, seja ativamente, cometendo o interditado, seja passivamente, descumprindo ordem, é desamar. A criança, sob a ameaça da imputação de desamor e das penas decorrentes, viverá um processo de sujeição.
Acontece a introjeção de uma disciplina não justificada: a criança não será obediente por compreender uma situação hierárquica, mas porque subjetivou sujeição. Uma submissão afetuosa. Submissão correlacionada a carinho. As afeições adultas contêm, talvez reproduzindo o aprendizado infantil dos significados do amor, um sofisticado e abrangente sistema de controle das vontades, dos corpos; da liberdade de ir e vir, de pensamento, de expressão.
Esferas da vida privada. Os indivíduos e as compreensões da vida privada que estão inscritas em suas histórias constituirão, articulados, a esfera da vida pública. A vida pública será a soma de vontades individuais, ou será multidão. Há enorme diferença: a soma de vontades individuais faz a cidadania que se profere como república. Só um cidadão tem vontade política deliberada. A massificação de vontades faz as hordas, os sectários, os fascismos.
Na república o amor às coisas de interesse geral pede um tipo de submissão: a advinda da vontade. O cidadão renuncia a parte de sua soberania e submete-se à deliberação da maioria porque aderiu a um (suposto) contrato. O cidadão voluntariamente submete-se à vontade da maioria dos cidadãos porque essa é a vontade de cada cidadão. Numa república a soma final de vontades permanece sempre pluralidade, adição de distintas posições.
Numa república que esteja à altura do conceito as vontades individuais não se dissolvem em opiniões de multidão, não seguem populistas, não obedecem líderes, não são estabelecidas por logaritmos de redes sociais. Ora, uma adição de distintas posições jamais fará uma soma igual ao total das partes. A vontade geral considerará os diversos pensamentos, sendo, portanto, sempre maioria, jamais (uma indesejada) totalidade.
Com ou sem “razão”, a maioria ganha, a minoria perde. Essa tem sido a regra do jogo nas democracias ocidentais. A regra do jogo está insculpida em constituições. Há muitas teorias constitucionais. Há alguns consensos formados: as constituições não são eternas, só devem valer enquanto fizerem sentido histórico; as constituições, contudo, jamais ficam ao sabor do momento exaltado ou ao gosto irado da multidão.
Na Tradição Ocidental as constituições preveem quem as interpreta e quem as reforma. As constituições estabelecem em si mesmas Poderes adequados para tanto. As constituições se abstraem da “vontade das ruas”. Há um livro: Poderes Selvagens – A Crise da Democracia Italiana, Luigi Ferrajoli, tradução de Alexander Araújo de Souza, Coleção Saberes Críticos, Coordenação de Alice Bianchini e Luiz Flávio Gomes, Editora Saraiva.
Nele há a sugestão fundamentada de submissão adulta à vontade da constituição. Não será submissão afetiva, mas pensada, legitimada, consensuada. Ela perseverará também nas crises, ou principalmente nas crises. Ora, que o Brasil está em desgosto com seus governantes, não há dúvida. O combo PTMDB ganhou uma eleição às custas da ladroagem às verbas públicas e, então, aos votos. Bem, o TSE acaba de absolver a chapa Dilma/Temer.
Suponho que isso contente e descontente coxinhas e mortadelas, o que pouco se me dá. O problema – e isso me importa – é que esse resultado também desagrada a grande parte dos brasileiros que não se filia a esses fascismos. Então, que fazer? A mim me parece que só há um caminho sensato: Constituição. Por sobre quaisquer paixões (política apaixonada beira o fascismo), amor às regras do jogo: uma republicana obediência à constituição.
Poderes Selvagens, o livro. Ferrajoli explicita os equívocos que levaram a Itália ao berlusconismo: esse estranho amor ao antipolítico, esse insensato ódio à política, esse afeto infantil à autoridade pessoal. As instituições representativas intermedeiam e devem intermediar a vontade popular. O esvaziamento da dimensão constitucional da democracia dissolve a política como representação da vontade republicana.
Mexer nas regras do jogo para agradar jogadores é temerário. Jogar para as arquibancadas não é a melhor recomendação. E, pior, quando as torcidas jogam para si mesmas, complicam o sistema de jogos. Melhor não.

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