Memórias racionais de um ser esquecido

 

Tenho enfrentado grandes dificuldades em minha existência nessa terra abençoada por Deus; e falar que a vida poderia ser melhor pra mim é traduzir intimamente a essência da palavra eufemismo. O sofrimento e a humilhação são tão constantes que é de estranhar quando alguma alma singela gratuitamente me dá um sorriso, ou simplesmente não ignora minha presença quando perambulo pelas ruas da cidade. Ao que me lembro, nunca houve um dia em que não recebesse xingamentos; que não se afastassem por causa de minha aparência desleixada e torcessem o nariz ao sentirem o odor desagradável que me acompanha. Por isso, tenho a expressão triste, que baixo os olhos resignados ao avistar as pessoas. Conviver com as dificuldades faz parte do meu cotidiano, mas, quando o rigor do inverno se aproxima, fico muito mais apreensivo e deprimido. Logo que as mãos gélidas das baixas temperaturas tocam e adormecem meu corpo, sei que a sorte que se desenha não será melhor que de invernadas anteriores.  
 
Nada sei sobre meu pai, mamãe foi atropelada por um automóvel e morreu ainda quando eu era um bebê. Dos meus cinco irmãos tenho vagas lembranças, acho que estão como eu, jogados pelo mundo como se não houvesse razão para existirem. Não tenho lugar certo para morar, numa noite durmo embaixo da ponte, noutras sob o aconchego das marquises que me protegem da chuva e do sereno impiedoso. Nos dias que consigo adormecer serenamente, sonho com um lugar limpo e descente onde divido espaço com outros que se encontram na mesma situação. Mas momentos de alegria são efêmeros e sonhar com uma vida melhor é luxo reservado aos nobres. Vivo mesmo é atormentado pelos pesadelos, e esses não escolhem condição fisiológica, os piores acontecem quando estou acordado. 
 
Diariamente, sinto fome e procuro por migalhas jogadas nas lixeiras. Rasgo e espalho lixo para todos os lados, contribuo para que as ruas de meu município fiquem sujas, com bueiros entupidos mais resquícios de sobras da minha desordem e de meu intestino frouxo. Às vezes, penso que tudo isso não aconteceria se eu não estivesse abandonado pelas ruas; se me dessem um lar decente e o mínimo de carinho que mereço receber. Não sei o que fiz de tão mal na vida para herdar tanta desgraça e infortúnio como recompensa. Em minha consciência, pesa apenas o fato de ter urinado na plantação de alfaces de Dona Custódia. Será que ela rogou alguma praga pra mim? Não. Ela nunca soube de minhas travessuras e as colheitas regadas com minha uréia sempre renderam plantas com folhas largas e vistosas. Agora chega, cansei de contar as histórias de minha vida. Curiosos para saber meu nome? Sinto decepcioná-los, pois nem eu mesmo sei. Tratam-me por alcunhas.  Um dia vira-latas, noutro “Jaguara” sarnento, “Guaipéca”.  Sou apenas um miserável, sem lar e esquecido cachorro de rua.